Raul Moreira
Jornalista e cineasta
É válido se pensar que a derrocada da Cidade da Bahia, como era conhecida Salvador nos bons tempos, pode ser medida pela reação dos estrangeiros que a visitam. Sim, porque, ao contrário do que foi apregoado em boa parte do século passado pelos gringos, que a designavam, inclusive, de “Shangri-la dos trópicos”, a capital da Bahia tornou-se uma das mais desestruturadas e degradadas cidades do mundo, “um monstro”, como afirmou em tom alarmado uma antropóloga inglesa que para cá retornou depois de um hiato de 45 anos.
E o sentimento da antropóloga inglesa, como o de tantos estrangeiros que aqui aportam e se assustam diante do caótico e transfigurado cenário, se refere não apenas ao gigantismo doentio da metrópole, que roubou o charme da província, mas, também, à percepção de que outro tesouro esvaiu-se diante do sacrilégio do “progresso”: o povo, essa instituição que muitos diziam ser a alma da Cidade da Bahia escafedeu-se, perdeu o encanto, transformando-se no simulacro de si mesmo.
Certo que esse tipo de observação pode vir impregnado de traços de caráter colonialista, uma forma de enxergar os desafortunados dos trópicos como “cordiais”, os “bons selvagens” de outros tempos. Até porque a velha Cidade da Bahia de gente pacata, dos sobrados, dos coqueiros à beira mar, das donzelas do tempo do imperador, é uma construção romantizada que escondeu as mazelas de um mundo classista e de forte ranço escravocrata que ainda hoje alimenta o imaginário alheio, pelo menos até que se dê o choque de realidade.
E quando as ilusões são totalmente descortinadas, não há como relativizar o que é explícito. Isso porque, um olhar frio sob a Cidade da Bahia revela a sua tragédia, como uma impressão digital: o descaso, o abandono, o degrado, o caos no trânsito, a feiura das gigantescas periferias e dos palácios verticais, a sujeira, a superficialidade e má educação da gente, independentemente da classe, da raça, do credo, a falta de substância de uma metrópole apática e que, obviamente, choca quem foi seduzido pela força de seu imaginário.
Naturalmente que antes de partir para um destino mais aprazível, os estrangeiros fazem a pergunta capital: mas o que aconteceu para tanto? Como a resposta não se encontra nos manuais, mesmo para inglês ler, aqueles que se derem ao trabalho de buscar um bom interlocutor local podem, quem sabe, conhecer as razões do nascimento da tragédia no espírito de Salvador.
Há quem diga que a origem da tragédia remonta aos descompassos das últimas quatro décadas, quando a cidade praticamente triplicou a sua população e se expandiu de forma desorganizada: uma transformação brutal, levando-se em conta que ao perder para o Rio de Janeiro o posto de capital do Brasil, pouco depois da segunda metade do século XVIII, Salvador caiu no ostracismo e praticamente estagnou, passando a viver das glórias de um passado representado pelas edificações de sua arquitetura colonial e no eterno colorido de sua gente.
E o isolamento de quem foi e deixou de ser, constituiu-se em um verdadeiro tesouro. Isso porque, foi graças a ele que a capital auto preservou-se, na estética e nos costumes. Em outras palavras: mesmo bufando por se sentir preterida, mal sabia a velha senhora orgulhosa que tal distância da modernidade geraria um caldo substancial e sui generis que mais tarde, durante boa parte do século XX, a faria uma das mais interessantes cidade do mundo aos olhos alheios.
Naturalmente, essa Cidade da Bahia ancestral que parecia suspensa no tempo e de certa forma apacificada nas relações entre dominados e dominadores, tornou-se refúgio de uma grande quantidade de estrangeiros de boa cepa. Paralelamente, ganhou o mundo através das canções de Dorival Caimmy, da literatura de Jorge Amado, pelo surto das artes plásticas, pelo cinema, enfim, cá, as vanguardas encontraram terreno propício para deslanchar e projetá-la além-mar.
Depois, de forma fáustica, a partir dos anos oitenta, veio o desconfiável progresso, disfarçado de surto desenvolvimentista, o qual, aos poucos, deu outra conformação a Salvador e ao mesmo tempo roubou-lhe o seu espírito secular, fazendo-a qualquer uma. E, para os que a conheceram como tépida província de ritmo descansado, como a inglesa atônita, ficou, apenas, a lembrança de uma época em que o tempo não escorria pelas mãos.
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