quinta-feira, 2 de maio de 2013

SINHÁ E OS FILHOS DA DESGRAÇA


de Daniel Lisboa

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Uma louca grávida perambula pela cidade. O olhar de ódio sobressai sob a boca banguela que resmunga, xinga e amaldiçoa. Um pano branco encardido, amarrado a cabeça, contém o crespo cabelo negro e pensamentos malignos. Segue louca, carregando um saco cheio de contratempos nos ombros. A fêmea faminta devora o tempo a sua frente. Não precisa olhar para ver, sabe de cor, o cheiro imundo do inimigo. Sua arma, sua defesa: a escarrada. Diariamente utilizada em caras descaradas e merecedoras. Cobradores, pastores, marginais e policiais. Todos, em algum momento, foram lambuzados por sua baba bandida. Hoje, desde cedo, acumulava saliva na boca para algum abençoado. Para alguém que merecia, mesmo sem saber, uma bela cusparada na cara. Algo karmico, catarmico, cabido. No entanto, nessa tarde, por algum estranho motivo, ainda não tinha acertado ninguém. E antes do sol cair, Sinhá Desgraça, como era conhecida, decidiu inovar. Preparou os carnudos lábios em posição de assobio e atirou pra o céu. Cuspiu pra cima, sobre seu próprio rosto. O tempo cessou. Observou o líquido esverdeado romper a gravidade até parar e flutuar por alguns milésimos no ar. Compôs sua face para receber a benção e deixou acontecer. Foi como um suicídio, um auto carinho, um beijo de Deus. Sinhá melada sorriu.

Sinhá Desgraça estava grávida há uns 10 anos. Era fecundada diariamente por testículos subdesenvolvidos. Pombos sujos, sacizeiros, maloqueiros e encrenqueiros, todos, nos dias mais tortos, acabavam derramando sua porra por ali.  Sinhá era um alma prenha, permanentemente lotada das desgraças alheias. Carregava o peso do mundo em sua barriga, que obviamente, não parava de crescer. Alguns diziam que umas 20 crianças viviam ali e que não queriam sair, pois sabiam do mal que as aguardavam. Já outros falavam que eram apenas vermes que se acumularam com anos de vida na rua. Eu acreditava que eram entidades verminosas, das mais saudáveis e inteligentes, que estavam ali aguardando o momento certo para sair, aguardando a revolução molecular, o ponto de encontro, o veraneio verminoso. Para mim, nada definia melhor a complexidade da existência humana do que a imagem dessa mulher barriguda errante.

Logo após o carnaval, depois de perambular catando latas entre o caos pop festivo, cuspir na cara de pierrôs e colombinas, e receber bastante carinho de rôla, Sinhá pareceu ter alcançado sua capacidade máxima.  Sua barriga já encostava no chão e de tanto arrastá-la, acabou por rompê-la.  Em plena quarta de cinzas, na praça Castro Alves, sobe o choro do chorume, o estopim foi ouvido. Sinhá deu a luz, ou melhor, deu-nos as trevas. Liberou uma legião de entidades materiais e espirituais, multicoloridas, que formaram a maior quadrilha que a cidade já viu. Uma horda de desordeiras crianças zumbis, os Filhos da Desgraça. O sangue do parto derramado pela vagina maltratada varreu tudo de frouxo que por aqui restava. Purificando e contaminando a mentalidade, ordenando e desorientando a rota, descaracterizando e revigorando a baianidade. Hoje, Salvador vive sob o comando da temida gang. Permanentemente menstruada, sem espaço para fuleragem, a cidade e seu povo foram jogadas num futuro paralítico, sem volta e sem antídoto. Sinhá, agora esvaziada, repousa no Palácio da Aclamação onde gasta seu precioso tempo amamentando seus bacuris iluminados.

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