Por Bernard Attal
O papel do colecionador Samir da Coleção Invisível foi o ultimo a ser escalado, em fevereiro de 2011, um pouco mais de um mês antes do começo das filmagens. O personagem exigia um grande ator por ser o objeto da busca e do fascínio do protagonista Beto, interpretado pelo ator Vladimir Brichta. O papel apresentava uma dificuldade particular: morando com a família numa fazenda isolada da região do cacau, o Samir tinha ficado cego ao longo dos anos. Meu objetivo era evitar os estereótipos da representação da cegueira. Pois quem vive cego num ambiente familiar sabe se virar muito bem e sua deficiência raramente fica obvia de primeira para os visitantes.
Meu amigo e co-roteirista Sergio Machado me sugeriu o nome do Walmor Chagas. Eu tinha assistido São Paulo S/A, obra pela qual eu tinha uma grande admiração mas eu não sabia se o Walmor ainda atuava. Consegui o endereço dele através duma produtora de elenco que logo me avisou que o Walmor recusava a maioria dos roteiros. Liguei com antecedência, enviei o roteiro na caixa postal indicada e, na situação de urgência de escalar o papel, propus de visitá-lo já no Domingo seguinte. Começou assim uma viagem bem parecida á da busca do colecionador pelo protagonista. Guaratinguetá fica a menos de duas horas do aeroporto de Garulhos. Mas da cidade até o sitio do Walmor, era mais de uma hora de viagem em pista de barro, me perdi várias vezes e subi ladeiras íngremes de pedras para finalmente descobrir o esplendor do Vale de Paraíba, respirar o ar puro, e ouvir a música de uma natureza pouca comprometida. Instruído por Walmor, eu tinha ligado do telefone público do mercadinho do ultimo vilarejo, Pedrinhas, aonde todo mundo parecia conhecer o ator. E lá na entrada do seu sitio, no final da ultima ladeira, estava Walmor me esperando, de chapéu, vestido com uma bermuda florida azul, e com seus cachorros correndo soltos a seu lado. Eu não lembro ter ficado tão impressionado por alguém como fiquei nesse momento pela beleza e elegância do Walmor. Alto, de ombros largos, com cabelos brancos lindos que pareciam seda, Walmor tinha tudo do rei de uma peça de Shakespeare.
Ele me levou na sua casa e começamos a conversar, bebendo um vinho português, e ele fumando um cigarro atrás do outro. Me disse logo que tinha gostado do roteiro, admirava Stefan Zweig cujo conto inspirou a historia do filme, e achou uma ironia incrível da vida de poder fazer um papel de cego num momento que ele quase não enxergava mais. Até essa revelação, eu não tinha percebido nada, de tanta mobilidade e agilidade que ele mostrava no seu próprio ambiente. Me confessou que essa doença era uma verdadeira tragédia para quem adorava ler mas tentava curtir a vida, ouvindo música. Assim descobri que o filho do caseiro tinha lido o roteiro pra ele mas que poucos detalhes da historia e do personagem tinham escapado a sua vigilância. Depois de três horas de conversa alimentada pela cultura imensa e pelo humor feroz do Walmor, eu tive que revelar que esse filme era meu primeiro longa metragem e que iríamos precisar ensaiar bastante para minha própria segurança e também para criar um cimento afetivo real entre seu personagem, sua mulher, sua filha, e o protagonista. Apesar da distância, da dificuldade de viajar no interior desse pais, e do calor do verão no interior da Bahia, principal locação do filme, Walmor topou.
Para quem faz seu primeiro filme, é sempre um desafio dirigir atores de lenda como Walmor. Legitimamente preocupado com seu legado, o grande ator as vezes tenta impor suas soluções, alterar os diálogos, o perfil do personagem, até mesmo o drama. Mas Walmor gostava de ser dirigido, fez sugestões sabias com tato e honestidade, e entrou de cara no personagem do colecionador arruinado e cego. Ele não gostava de improvisar. Talvez por ser um ator de teatro no coração, ele preferia interpretar o texto escrito. Ele era também um ator muito prático, não curtia os detalhes psicológicos mas precisava de motivos concretos. Na sua última cena, lhe pedi para sair pela porta do fundo. Ele me perguntou: “Porque?” Eu respondi: “Porque você acabou de se despedir.” Ele replicou: “Mas porque nesse momento mesmo? Sou velho e preciso mijar?”
Eu logo descobri que uma das marcas do grande ator é sua generosidade com os outros atores. Walmor fazia seus parceiros melhores, com sua presença forte e sua capacidade aguda de escutar. Walmor não tirou a cobertura para ele, nunca exigiu um plano, porque sabia que seu colega Vladimir Brichta precisava ser tão bom quanto ele para a relação entre os dois personagens funcionar. A lembrança das cenas entre esses dois homens lindos, humildes e tão talentosos até hoje me faz tremer de emoção. Ver na tela perfeitamente encarnado o que você escreveu no papel representa a grande gratificação de fazer cinema. Apesar das condições de trabalho exigentes e da sua saúde frágil, Walmor nunca se queixou de nada e logo criou sua rotina no convento onde a equipe ficava: o café e o cigarro logo as seis da manha, o uísque noturno para escutar o jornal nacional, e a sopa antes de dormir que minha esposa baiana preparou no modo francês para agradá-lo. Toda a equipe adorou o Walmor: as meninas costumavam mexer com delicia nos seus cabelos, ninguém deixou de tirar uma foto com ele, e eu posso ainda ouvir seu riso ruidoso cortado pela tosse do fumante .
O ultimo dia de filmagem com Walmor foi obviamente de emoção forte. Eu senti que talvez seria sua ultima cena no cinema. Eu não quis me despedir dele e tentei fazer mais planos. Mas Walmor estava cansado, e no final do dia, eu percebi seu alivio. Ele nos confessou que o tempo tudo, temia não conseguir terminar a filmagem. Fomos comer numa churrascaria de posto de gasolina e Walmor, feliz, encomendou um pedaço de jacaré, devorando a carne, rindo e contando historias para todos. Levando Walmor para o aeroporto, atravessamos Itajuípe, sede da filmagem, e pequena cidade que na sua historia foi palco de dois filmes: A Coleção Invisível e “Os Deuses e os Mortos” de Ruy Guerra em 1970. Walmor tinha sido escalado para o papel principal da obra do Ruy quarenta anos atrás. Uma semana antes da filmagem, ele pegou hepatite e teve que desistir. Muito abalado, nunca conseguiu assistir o filme que rendeu a Othon Bastos o premio do melhor ator no Festival de Brasilia. Walmor lembrou do episódio e talvez debatendo com seu próprio ateísmo, fez o percurso num longo silencio.
A Coleção Invisível estreou um ano e meia depois, em outubro de 2012, no Festival do Rio. Grande estrela do teatro brasileiro, Walmor, encorajado pelo próprio Luis Buñuel, tinha sonhado brilhar no cinema também e sempre lamentou a falta de boas propostas. Mas, no tapete vermelho do Cine Odeon, generoso como sempre, Walmor elogiou primeiro o trabalho de Vladimir e deixou para seu colega os holofotes. É pouco dizer que você vai fazer falta, Walmor. Sua arte, sua elegância, sua inteligência vão deixar um vazio imenso.
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