Após mais de dois anos, a Síria ainda não me sai da cabeça. Emoção de contemplar, no museu arqueológico de Damasco, mal acondicionado numa vitrine sem destaque, um modesto, insignificante pedacinho de cerâmica, encontrado em Ugarit, com alguns sinais de gravura, prova mais antiga no mundo da escrita “moderna” do homem: catorze séculos antes do Cristo. Nada a ver com hieróglifos ou escritas cuneiformes. Em Nova-Iorque ou Londres, teria direito a uma sala especial com luz própria, segurança exclusiva e longas explicações digitalizadas. Inegável prazer de passear por ruelas e becos sem o mínimo receio, de bisbilhotar a vida alheia nas vitrines das lojas populares. Haja flores de plástico, vistas da Mecca em veludo, chador e bordado de ouro!
Mas hoje prefiro falar das profundas marcas deixadas pelos colonizadores romanos.
Em 120 de nossa era, Roma tinha 51 províncias à volta do Mediterrâneo, do Egito à Inglaterra. A Síria foi uma delas, como provam as belíssimas ruínas espalhadas pelo território. Podemos afirmar que as três cidades romanas mais impressionantes nesta parte do mundo são Jerash na Jordânia, Balbeck no Líbano e Palmira na Síria. A três horas da capital Damasco e a meio caminho entre o mar e o rio Eufrates, fronteira da Mesopotâmia que foi berço de nossa civilização, Palmira teve sua hora de glória com a bela Zenóbia. Esta ousou até coroar-se rainha, contra a vontade de Roma.
Ela tinha pele morena . . . Seus dentes eram brancos como pérolas, e seus grandes olhos negros brilhavam como fogo, suavizados pelo mais atraente encanto. Sua voz era forte e harmoniosa. O entendimento brioso dela era fortalecido e adornado pelo estudo. Não desconhecia o latim, mas era igualmente perfeita nas línguas grega,siriaca e egipcia."
"Foi assim que o historiador Edward Gibbon louvou Zenóbia, a rainha guerreira de Palmira.
O que resta desta mítica cidade ainda vale uma demorada estadia no burgo de concreto inventado em pleno deserto, na beira de um osasis. Perto do agitado centro, podemos admirar, num vasto circo de montanhas douradas, mais de 500 colunas em pé, um enorme templo, túmulos com magníficos afrescos, tudo banhado por aquela luz sensual e detalhista que só existe nesta parte do mundo.
Não existe guia que não insista para o visitante subir até o castelo mouro, hoje arruinado, para contemplar o por-do-sol. Sendo amigo incondicional de meu leitor, recomendo fugir desta sugestão. No fim do dia, o topo do morro se transforma num gigantesco estacionamento de ônibus.
Uma multidão de turistas se acotovela nas primeiras filas para observar a mais deslavada armadilha do Oriente: o sol desaparece por trás do castelo, nas costas dos espectadores, enquanto o sítio arqueológico mergulha lentamente numa sombra acizentada sem a menor poesia, somente alegrada pelos flashes das câmaras japonesas. Melhor continuar seu passeio entre capitéis e muralhas milenares
.
Ao sul da Síria, a poucos quilômetros da fronteira com a Jordânia, a negra cidade de Bosra, construída com blocos da lava dos velhos vulcões da vizinhança, oferece a surpresa de um dos mais excepcionais – pelo tamanho e estado de conservação - teatros do império romano. Podendo abrigar doze mil espectadores, continua sendo usado a cada dois anos para um prestigioso festival de música e dança. Ao acaso do passeio pelas ruelas e pracinhas, é fácil indentificar aqui um portão, lá uma coluna de antigos templos e palácios. Mas não é só nestes casos que a presença romana se manifesta. Em Damasco, Alepo ou simples vilarejos, os vestígios são corriqueiros em qualquer esquina. A Síria é um museu a céu aberto onde mosáicos romanos e bizantinos brotam do chão a cada passo. É só ficar atento para cada um fazer suas próprias descobertas...
obrigado pela viagem guiada pelas palavras.
ResponderExcluir