sexta-feira, 9 de outubro de 2015

ISABEL GOUVEIA: ENTREVISTA

"O terceiro setor ainda é um grande desafio"

Isabel Gouvea, 62, dirige a Oi Kabum!, que já formou 480 jovens em Salvador - Foto: Fernando Vivas | Ag. A TARDE

Dois mil e quinze tem sido especialmente bom para a Oi Kabum! A escola de arte e tecnologia, que oferece formação profissional a jovens de comunidades urbanas, comemorou 12 anos de atuação com a exposição Co-Mover, que reuniu obras produzidas por alunos  de suas quatro unidades, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Belo Horizonte -  que  esteve em cartaz até o início deste mês no Museu de Arte da Bahia -, e com o lançamento do livro De Todo Tipo: experiências tipográficas, fruto de extensa pesquisa sobre a tipografia popular usada nas ruas e feiras da cidade, produzida  por cinco turmas. O balanço da atuação da Kabum,  ao longo deste período, feito aqui pela sua coordenadora-geral, a fotógrafa Isabel Gouvea, 62, paulista radicada na Bahia desde 1978, tem sido bastante positivo. Seus projetos formaram, entre 2003 e 2015, mais de 1.200 pessoas. Na Bahia, o saldo é de  480 jovens,  boa parte deles, 60%, inserida no mercado de trabalho. Programa de Educação da Oi Futuro, desenvolvido em parceria com a Cipó - Comunicação Interativa desde 2004, a escola contempla áreas diversas -  computação gráfica, design gráfico, fotografia, vídeo e multimídia. Nesta entrevista, Isabel  fala sobre os caminhos que a levaram da fotografia ao terceiro setor, o desafio de firmar parcerias longevas que garantam a manutenção dos   projetos e a experiência que a levou a apostar na educação não convencional do olhar como plataforma de transformação de seres humanos.
Você está na Cipó desde o início e  passou por todas as etapas de transformação da ONG. O que ficou desse processo, ao longo dos últimos 12 anos?
Começamos em 1999. A Cipó era então uma equipe bem pequena, com a jornalista Anna Penido, e funcionava como uma agência de comunicação ligada à Rede Andi, de defesa da criança e do adolescente, que tinha sede em Brasília. Na época, o sonho era expandir para todo o país, com um escritório em cada cidade.  Eu fui uma das pessoas que entraram aí e, juntos, concebemos uma série de projetos de inserção de jovens de comunidades populares em comunicação,  arte e tecnologia. Um dos editais que conseguimos, entre os muitos que tentamos, foi o do Estúdio Cipó de Multimeios, que funcionou entre 2000 e 2003, mas não conseguimos mais financiamento, o que é uma característica do terceiro setor,   os apoios são geralmente pontuais, e isso costuma ser um grande desafio. Em 2003, participamos dos editais da Oi Patrocínios Culturais com o Estúdio Cipó e, finalmente, fechamos uma parceria mais longa com a Oi Futuro, em julho de 2004, que se mantém até hoje. Começamos em Amaralina, onde ficamos durante quatro anos, e, em outubro de 2009, viemos para o Centro Histórico, onde temos um prédio maior, com uma pequena galeria de arte.
No centro, criou-se uma relação maior com a cidade?
Eu diria que criamos um trânsito maior com a cidade. Quando viemos para cá, desenvolvemos um projeto quase que de extensão, que foi o Pelourinho Digital. Infelizmente, por falta de patrocínio,  durou apenas dois anos. Agora, em relação ao Oi Kabum! já estamos na sexta turma. São 18 meses de duração dos cursos, com  alunos entre 16 e 20 anos, cursando o ensino médio ou formados no ensino médio, e é uma preparação verdadeira, forte e intensa, com aulas de segunda a sexta, das 8h ao meio-dia. Trabalhamos com uma metodologia que é o "aprender pelo fazer". Todo o aprendizado se dá dentro do processo produtivo. Além das aulas práticas, eles aprendem também  a analisar, a avaliar... Nunca há um ano igual ao outro, estamos sempre nos renovando e nos atualizando, o que é uma necessidade quase que básica. Olha a evolução tecnológica que ocorreu desde que começamos? Os primeiros jovens que recebemos - especialmente as meninas - praticamente não tinham contato com a tecnologia. Hoje, chegam com câmeras do irmão, do primo, às vezes, tão boas ou até melhores do que aquelas que temos aqui (risos). Além de conhecimentos técnicos, a equipe precisa estar em contato com o mercado de arte contemporânea do planeta.
Você chegou a Salvador em 1978 e tem uma carreira como fotógrafa consolidada. O que trouxe de sua experiência nessa profissão para a gestão da ONG?
Bem, da minha trajetória como fotógrafa creio que trouxe tudo que pude, tudo que aprendi quis colocar aqui dentro. Na verdade, trabalhar num projeto como esse é assumi-lo como seu projeto de vida. E foi desse modo que fui entrando no terceiro setor e nos projetos sociais. Minha primeira experiência foi num projeto de teatro tocado por Maria Eugênia Millet com o Projeto Axé. Ela me chamou e fiquei documentando durante um ano os ensaios e vivências. Aquilo foi me envolvendo e me comovendo. Em seguida, Luiz Marfuz me chamou para o Liceu de Artes e Ofícios, e trabalhei com ele no projeto Cuida Bem de Mim. Foi ali, comecei a pensar em como, através da fotografia, eu conseguiria atingir os mesmos objetivos que são atingidos por quem trabalha com teatro, que é conseguir transformar conceitos, comportamentos, desenvolver uma pessoa do ponto de vista emocional e social. Um belo dia, o diretor do Liceu me ligou pedindo um projeto em 24 horas. Eu iria trabalhar junto com a  historiadora Graça Leal.   O projeto era estudar a história da Bahia, de Salvador, usando a linguagem fotográfica. O projeto se chamava "Conhecendo a cidade, descobrindo o olhar". Os jovens estudavam história e iam aos locais fazer uma leitura própria e fotografar.
A imagem tinha um peso, não?
Sim, exatamente, a imagem tem um tipo de alfabetização, um tipo de semântica muito própria. Por exemplo, quando trabalhei com Marfuz no Liceu, eu observava que, muitas vezes, meninos que faziam curso de pedreiro ou de eletricista, que tinham escolaridade "frágil",  com uma câmara na mão, davam um show nos meninos do núcleo de vídeo, que tinham uma escolaridade bem maior. Há outras formas de raciocínio e de linguagem, outras formas de semântica, que podem ser trabalhadas e que nada têm a ver com a escola tradicional.
Já há um retorno dos meninos formados pelo projeto e que hoje estão atuando no mercado como profissionais?
Temos uma pessoa na equipe que tem como papel fazer justamente o acompanhamento dos egressos, que é  como chamamos aqui. Então, fazemos pesquisas, pelo menos uma vez por ano, uma espécie de rodada de contatos, na qual checamos a inserção dos ex-alunos no mercado de trabalho, atualizamos os dados deles em nosso cadastro e verificamos se houve continuidade daquilo que foi ensinado. O importante para nós, em primeiro lugar, é que eles continuem no caminho que escolherem , seja uma universidade ou mesmo  um curso técnico. E, até agora, o retorno tem sido excelente. Mais de 60% dos egressos trabalham hoje em áreas qualificadas e afins, ou seja, eles desenvolveram o potencial. E temos, ainda, alguns casos de destaque. Por exemplo, o atual gerente de computação gráfica do Irdeb é um aluno nosso, da primeira turma, Benjamim Reis. Ele entrou lá como estagiário e em pouco tempo virou gerente.
Você falou lá no início em uma pedagogia do "aprender fazendo". Como isso acontece dentro da Oi Kabum!, há projetos internos de produção?
Nós temos uma parceria com o Canal Futura e, todo ano, produzimos  uma média de quinze a vinte matérias para serem exibidas no canal. Aqui, pela manhã, é uma escola e, à tarde, funciona como  núcleo de produção. Então, captamos projetos, trabalhos e clientes. E é desse modo que  damos oportunidade aos jovens que formamos. A continuidade do desenvolvimentos deles  começa aqui. Outra iniciativa nesse sentido são os editais internos. Temos uma série de editais internos. A ideia é, além de incentivar a produção, capacitar os jovens a participarem dos muitos  editais externos, dos editais  oferecidos no "mundo real". 
Observando as peças produzidas por vocês, notamos que há uma forte ligação com a identidade cultural baiana.
Sim. Por exemplo, um dos trabalhos que expomos no Museu de Arte da Bahia foi produzido pelas turmas de design gráfico, que desenvolvem o "De todo tipo", projeto que trabalha justamente com a questão da identidade cultural. É algo que nos interessa especialmente. Eles pesquisaram nas ruas e nas feiras a tipografia utilizada e aprenderam como se constrói. Essa pesquisa, que foi tocada por cinco turmas, deu origem a um livro, lançado também no MAB. Cada tipografia criada por eles foi acompanhada por um conceito,  bem como por uma indicação de possível aplicação. Temos a proposta de fazer de cada jovem um pesquisador, alguém   vinculado de modo inteligente à cidade e às suas expressões culturais mais significativas.

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