A fala é de 2011, durante a Conferência
do Estoril daquele ano. Em um papo sobre segurança, o escritor moçambicano Mia Couto
—vencedor do Prêmio Camões (2013), o mais importante da língua
portuguesa .
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de
ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e
demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos
atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.
Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença
entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam
a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as
crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e
conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho
engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.
Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de
acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para
além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O
medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha
casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser
eu mesmo. No horizonte, vislumbravam-se mais muros do que estradas.
Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há,
neste mundo, mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a
narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses
que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e
um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os
fantasmas: morreram quando morreu o medo.
Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os
ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu
barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa
construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em
nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.
Em nome da segurança mundial, foram colocados e
conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história.
A mais grave dessa longa herança de intervenção externa é a facilidade com que
as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a
sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo: a
Oriente e a Ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os
seculares meios de governação. Precisamos de intervenção com legitimidade
divina.
O que era ideologia passou a ser crença. O que era
política, tornou-se religião. O que era religião, passou a ser estratégia de
poder.
Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos.
Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas.
A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso
aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso
nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de
mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para
enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços
secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.
Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser
outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo
desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a
chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o
clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a
realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.
Vivemos como cidadãos, e como espécie, em
permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as
liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a
racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não
sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas: por que motivo a crise
financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou,
apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por
que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que
mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam
mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se queremos resolver
e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem
reais e urgentes.
Há uma arma de destruição massiva que está sendo
usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da
guerra.
Essa arma chama-se fome.
Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos
passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena
do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de
insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra silenciada violência: em
todo o mundo, uma em cada três mulheres foi — ou será — vítima de violência
física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que, sobre uma
grande parte do nosso planeta, pesa uma condenação antecipada pelo fato simples
de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo.
Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como
militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e
discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a
barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova
de coerência, nem de ética nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que
pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para
proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem
parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha
do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns
trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção.
Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma
metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem
pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm
medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do
sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca
disto, que é o medo global, e dizer:
“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os
que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da
fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo
da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.
E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha
medo que o medo acabe.
Muito obrigado.
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