terça-feira, 17 de junho de 2014

PRA VER A COPA PASSAR

Em dias de Copa do Mundo no Brasil, a vida até pode continuar igualzinha no país. Descobrir, no entanto, onde está essa vida igualzinha é que são outros quinhentos. Com os meios de comunicação tendo assumido a função de dizer às pessoas o que está acontecendo ou não no planeta e até fora dele, a realidade, no rádio, nos jornais, na web, na TV, desde o dia 12 deste mês, parece ter entrado em suspensão, numa espécie de adaptação da rotina brasileira ao comportamento descrito na canção A Banda, de Chico Buarque. Basta substituir a palavra banda por Copa e tem-se o que se vê na TV.
 
Para quem não lembra, os versos da banda anunciam: “A minha gente sofrida despediu-se da dor/pra ver a banda passar/cantando coisas de amor/o homem sério que contava dinheiro parou/o faroleiro que contava vantagem parou/a namorada que contava as estrelas parou/para ver, ouvir e dar passagem/a moça triste que vivia calada sorriu/A rosa triste que vivia fechada se abriu/e a meninada toda se assanhou/pra ver a banda passar/cantando coisas de amor. O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou/que ainda era moço pra sair no terraço e dançou/ a moça feia debruçou na janela/pensando que a banda tocava pra ela. A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu/a lua cheia que vivia escondida surgiu/minha cidade toda se enfeitou/pra ver a banda passar/cantando coisas de amor. Mas para meu desencanto/o que era doce acabou/tudo tomou seu lugar/depois que a banda passou...”.

O contexto é outro e é de virar o estômago a essa altura literal do campeonato o velho discurso da política do pão e circo. O que se ressalta aqui é o poder de agendamento de si mesmo de um evento como a Copa do Mundo com toda a sua força comercial e o efeito dos meios de comunicação sobre a realidade. Tem-se ou não a impressão de que o país praticamente parou para ver a Copa passar na TV? Os ladrões pararam de assaltar, os homicidas pararam de matar, os prontos socorros e hospitais passaram a ter vaga para todos, os efeitos de chuvas e desabamentos (como em Natal) passaram a ser menores, os acidentes de trânsito pararam de acontecer, a violência cessou e o mundo deu pause? Sim, é esta a impressão que se tem e isso nada tem a ver com alienação do público. O tema aqui é outro. Engana-se quem pensa que só porque se tem hoje a internet, as redes sociais ou o chamado jornalismo cidadão, não são os meios de comunicação quem têm o estatuto de dizer o que está ou não acontecendo.

Já nos bastidores da Copa, nos flagrantes que rolam para além da bola nos quatro cantos dos estádios, houve alguns destaques com maior potencial de estranheza. O primeiro foi aquele índio da festa de abertura, usando segunda pele, cinto de segurança para não pender canoa cenográfica abaixo e duas unhas das mãos maiores do que os cavadores do tatu-bola que deu origem ao mascote da Copa, o apagado Fuleco. Depois veio, na categoria estrondo, as bundas e outras partes pudendas de fora dos croatas, com destaque para um ou outro comentário mais maldoso nas redes sociais, como o de coleguinha baiano: pelo tamanho do blur (efeito especial para distorcer a imagem) num determinado ponto do nu frontal de um dos croatas, na hora da foto deveria estar fazendo muito frio na Praia do Forte.

E o que dizer do menininho curitibano, José, morador do orfanato que recebeu a visita da seleção espanhola após o banho de lavada que esta levou dos holandeses? Numa inversão de sentimentos, o menino, com toda a autenticidade dos seus 6 anos, confessou, diante daqueles homenzarrões abatidos por um placar tão inesperado: “é muito triste ver aqueles rostos sem esperança”. E não é mesmo, José?
Malu Fontes  é jornalista e professora de jornalismo da Ufba. 
maluzes@gmail.com

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