quinta-feira, 12 de junho de 2014

A VIDA EM COR DE CINZA

TADEU ARAUJO


Como havia anunciado anteriormente, sábado passado assisti a Praia do Futuro, de Karim Ainouz.
A primeira coisa que tenho a dizer sobre é que Ainouz foi de uma coragem... O filme dura cerca de duas horas e eis que, chegado o final, as luzes se acendem e me vi perplexo, com a sensação de que o cara, o tal do Ainouz, não quis contar nada. É... é mais ou menos isso. Para ser mais exato, ele conta muito, mas justamente não mostrando nada, apenas insinuando, ainda assim sob nuvens e névoa. Não esperem dias ensolarados, nem mesmo nas cenas em Fortaleza.
O fato é que o filme trata da história de um homem, Donato, papel milimetricamente defendido por Wagner Moura, em cuja vida nada acontece, ou melhor, acontece mas de modo tão disfarçado que parece que não. Estou dando um nó na cabeça de vocês, não é? Tentando explicar: Donato não demonstra. Fico pensando em que buraco profundo e por que razões ocultas, já que o filme não oferece pistas, aquele rapaz empurrou suas emoções e sentimentos. Ele trabalha como salva-vidas, mas em nenhuma cena há qualquer sinal de que se alegra ou entristece com o ofício. Após um acidente, em que não consegue salvar um homem, conhece um alemão. Na velocidade de um foguete eles aparecem na próxima sequência, sem qualquer preâmbulo, já em pleno sexo, e com a mesma rapidez partem para Berlim. Chegando lá, constituem uma relação a dois. Será que se amam? Nâo dá para saber. Arrisco-me a opinar que de algum modo se complementam. Não há demonstrações de afeto, nem de desafeto, ainda assim, as relações sexuais são duras, quase lutas corporais.
Ninguém sorri, à exceção do irmão de Donato, em sua fase pré-adolescência. Mais adiante, quando este ressurge já adulto traz no rosto raiva, incompreensão e mágua.
Um pouco depois da chegada à Alemanha, Donato anuncia que retornará para Fortaleza e justifica que fará isso porque não consegue viver longe do mar. Este anúncio, contudo, não se concretiza. Por outro lado, quando ainda morava naquela cidade e vivia, pela própria profissão, sempre na praia, não parecia estar feliz com isso. Para completar, estando longe do Brasil, sua terra natal, nunca menciona ter saudade de nada, nem da própria família que, aliás, nem aparece no filme.
Vejo Donato como uma espécie de Macabéia, de A hora da estrela, de Clarice Lispector: uma dessas personagens que vêm ao mundo como se tivessem caído de um pára-quedas e chegado a ele sem as engrenagens funcionando. Figuras humanas  deslocadas da realidade que as cerca, espécie de mortos-vivos.
Pois bem, é assim que se configura este Praia do Futuro: uma sequência de cenas sem a presença de emoções, o que nos leva a desconfiar de que elas não aparecem por provavelmente estarem represadas, caladas nos calabouços desse pintado- de-cinza-personagem chamado Donato. Na cena final, as três personagens montadas em suas motos numa estrada alemã, fazem uma curva e desaparecem em meio à bruma. O desfecho dessa história não poderia ser mais coerente.
A frase que não quer calar: AMEI o filme. Diferente de suas imagens propositalmente desbotadas, o talento de Ainouz brilha com fulgor, ao apresentar, por meio de tão exíguas demonstrações, o quanto um ser humano pode desfigurar-se assim, numa vida em cor de chumbo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails