Duas ou três coisas sobre as mortes em Ondina
Uma coisa é certa sobre as redes sociais: ao mesmo tempo em que ajudam as famílias de vítimas de grandes tragédias a mover campanhas de mobilização por esclarecimento e justiça, elas exigem dessas mesmas famílias uma força emocional que não se pode cobrar de quem acabou de ter a vida psíquica estraçalhada. Paremos com a falta de cuidados e bons modos e vamos diretamente ao nome das coisas. Gatos e cachorros se acham no direito de, atrás de seus teclados, matar mais uma vez quem já morreu.
Se ninguém aqui leu alguma toupeira moral e ética dizendo numa rede social que alguma coisa Emanuel e Emanuelle Gomes devem ter feito para provocar a ira da oftalmologista Kátia Vargas Leal Pereira a ponto dessa perseguir com seu carro a moto onde estavam, causando-lhes a morte, agradeçam aos céus e peçam aos deuses para que o mesmo tenha acontecido com a mãe e o pai de ambos. Perder dois filhos e ler coisas desse tipo sem perder a sanidade e a fé na vida é coisa para pouquíssimos. Nada mais cruel e covarde que atacar quem já não pode se defender ou matar moralmente quem já morreu fisicamente, acusando-os de ter confrontado ou provocado a própria morte. Não se deseja, do mesmo modo, que as redes sociais sejam um quadro em branco disponível para as bestas feras existentes em toda e qualquer sociedade e que agora pedem pena de morte para a oftalmologista. Mas, assim como ela não pode ser irreversivelmente inscrita como a tradução encarnada da maldade bípede desumanizada, o casal de irmãos mortos não pode jamais ser responsabilizado pela própria morte. Não eles, mortos nas circunstâncias em que morreram e vistas por todos os consumidores de informação, graças à proliferação de câmeras que hoje tudo registram nas principais vias de qualquer cidade.
Os motoristas odeiam motociclistas? Há uma imensidão de assaltos e crimes no trânsito cometidos com o uso de motos? As mulheres dentro dos seus carros têm pânico da aproximação de motociclistas? As grandes cidades e seu corre-corre estressam as pessoas ao ponto de fazê-las terem crises nervosas, surtos psicóticos e reações extremas de ira? Dando sim para todas essas hipóteses clichês, nem bem o casal de irmãos acabava de morrer, o advogado da oftalmologista já se apressava em montar sua tese da neurose social e da mulher temerosa no trânsito, anunciando solenemente que esse foi o contexto que levou sua cliente involuntariamente para a cena de um ‘acidente’ fatal.
Há alguns meses, um motorista de ônibus ficou furioso contra um médico que, ao ter o carro atingido por uma colisão traseira do ônibus, saiu do automóvel e começou a filmar os danos. Irritado, o motorista não pensou duas vezes: acelerou o ônibus contra o carro já colidido e a família do médico, machucando todos. Naquele caso e contexto, quem teve dúvida de quem era a vítima e o causador da tentativa de homicídio? Por que, agora, alguém ousa, mesmo que seja meia dúzia de anencéfalos, considerar os irmãos como corresponsáveis pela própria morte? É preciso recusar-se a crer que essa avaliação de dois pesos e duas medidas se dá porque Kátia Vargas é uma cidadã tida como do bem. Pessoas do bem e de bem, sim, podem ter surtos. Mas quando o surto resulta na morte de duas pessoas, num contexto registrado e visto por tanta gente, o mínimo que se deve a elas é respeito à sua memória e à dor da família. Ninguém tem o direito de desrespeitá-las impondo-lhes a responsabilidade e culpa pela própria morte. A dor é alheia, mas o bom senso é nosso. Na falta da solidariedade daqueles incapazes de tê-la, recomenda-se o silêncio.
Entrou água
Se ninguém aqui leu alguma toupeira moral e ética dizendo numa rede social que alguma coisa Emanuel e Emanuelle Gomes devem ter feito para provocar a ira da oftalmologista Kátia Vargas Leal Pereira a ponto dessa perseguir com seu carro a moto onde estavam, causando-lhes a morte, agradeçam aos céus e peçam aos deuses para que o mesmo tenha acontecido com a mãe e o pai de ambos. Perder dois filhos e ler coisas desse tipo sem perder a sanidade e a fé na vida é coisa para pouquíssimos. Nada mais cruel e covarde que atacar quem já não pode se defender ou matar moralmente quem já morreu fisicamente, acusando-os de ter confrontado ou provocado a própria morte. Não se deseja, do mesmo modo, que as redes sociais sejam um quadro em branco disponível para as bestas feras existentes em toda e qualquer sociedade e que agora pedem pena de morte para a oftalmologista. Mas, assim como ela não pode ser irreversivelmente inscrita como a tradução encarnada da maldade bípede desumanizada, o casal de irmãos mortos não pode jamais ser responsabilizado pela própria morte. Não eles, mortos nas circunstâncias em que morreram e vistas por todos os consumidores de informação, graças à proliferação de câmeras que hoje tudo registram nas principais vias de qualquer cidade.
Os motoristas odeiam motociclistas? Há uma imensidão de assaltos e crimes no trânsito cometidos com o uso de motos? As mulheres dentro dos seus carros têm pânico da aproximação de motociclistas? As grandes cidades e seu corre-corre estressam as pessoas ao ponto de fazê-las terem crises nervosas, surtos psicóticos e reações extremas de ira? Dando sim para todas essas hipóteses clichês, nem bem o casal de irmãos acabava de morrer, o advogado da oftalmologista já se apressava em montar sua tese da neurose social e da mulher temerosa no trânsito, anunciando solenemente que esse foi o contexto que levou sua cliente involuntariamente para a cena de um ‘acidente’ fatal.
Há alguns meses, um motorista de ônibus ficou furioso contra um médico que, ao ter o carro atingido por uma colisão traseira do ônibus, saiu do automóvel e começou a filmar os danos. Irritado, o motorista não pensou duas vezes: acelerou o ônibus contra o carro já colidido e a família do médico, machucando todos. Naquele caso e contexto, quem teve dúvida de quem era a vítima e o causador da tentativa de homicídio? Por que, agora, alguém ousa, mesmo que seja meia dúzia de anencéfalos, considerar os irmãos como corresponsáveis pela própria morte? É preciso recusar-se a crer que essa avaliação de dois pesos e duas medidas se dá porque Kátia Vargas é uma cidadã tida como do bem. Pessoas do bem e de bem, sim, podem ter surtos. Mas quando o surto resulta na morte de duas pessoas, num contexto registrado e visto por tanta gente, o mínimo que se deve a elas é respeito à sua memória e à dor da família. Ninguém tem o direito de desrespeitá-las impondo-lhes a responsabilidade e culpa pela própria morte. A dor é alheia, mas o bom senso é nosso. Na falta da solidariedade daqueles incapazes de tê-la, recomenda-se o silêncio.
Entrou água
No vocabulário do senso comum, entrar água é uma expressão usada para traduzir quando um projeto ou plano deu ou começa a dar errado, frustrando as expectativas de quem o planejou e de quem acreditava nele. Levando-se em conta que a marca do governo federal é “um país rico é um país sem pobreza” e contrapondo-se essa frase de efeito aos últimos índices de analfabetismo identificados pelo IBGE no Brasil, pode-se, sim, dizer que entrou água na tese governamental de que somente nos últimos dois anos 22 milhões saíram da pobreza. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 8,7% da população brasileira acima de 15 anos é analfabeta. Em números absolutos, o Brasil tem 13,163 milhões de analfabetos. Se isso não é uma forma gigantesca de manutenção de pobreza, no país que ocupa o 7º lugar no ranking da economia mundial, é porque, no mínimo, esse país adota um sentido esdrúxulo para a palavra pobreza. Como pensar em saída da pobreza com tanta gente incapaz de ler e escrever?
No Nordeste, a taxa de analfabetos triplica: 25% da população acima de 7 anos, cenário equivalente ao da Índia. Entre a população adulta nordestina, a Pnad aponta que um entre cada 4 homens com mais de 25 anos é incapaz de escrever um bilhete, identificar sem ajuda de terceiros o itinerário de um ônibus ou ler qualquer instrução. Como os complexos brasileiros, sejam de superioridade ou inferioridade, só permitem que a população enxergue-se a partir da comparação com os países ricos ou com os miseráveis, eis o índice de analfabetismo em países como Estados Unidos, Alemanha e Nova Zelândia: em torno de 1%. É verdade que as coisas não mudaram muito em relação à última Pnad, quando o número de analfabetos no Brasil era de 12,866 milhões. O problema está menos na comparação entre os números absolutos de analfabetos de 2011 e de 2012 e mais no que eles revelam quase discretamente: em vez de fazer cair o número de analfabetos no país, os governos, seja nas esferas federal, estadual ou municipal, conseguiram a proeza de fazer o número de analfabetos crescer.
Na Bahia, onde se cultiva o talento de transformar até tragédia em festa, mesmo que para isso seja preciso torturar números, a tradução dos números do analfabetismo local chegou a ser engraçada. Vale reiterar que, no contexto nacional, os estados onde houve maior crescimento do analfabetismo foram justamente Bahia, Tocantins, Paraíba e Pernambuco. Como isso foi traduzido por aqui? Retirando-se a Bahia do contexto do país, inserindo-a apenas no cenário nordestino, onde todos os estados não têm nada a comemorar, e falando-se não do aumento do número, mas enfatizando-se que, no Nordeste, a Bahia é o melhor estado em números (absolutos) de analfabetos. 15,86% dos baianos são analfabetos. Com ou sem Topa (Todos Pela Alfabetização), programa do governo do estado para alfabetização de adultos.
Nem precisaria repetir, mas não custa nada. Quando se fala em brasileiros resgatados da miséria, isso significa basicamente que essas pessoas passaram a ter (mais) comida na mesa e que, para além da comida, foram incluídas no admirável mundo do consumo. E é aí que o conto de fadas contado pelas políticas públicas não resiste a reflexões que se pretendam ir além da superfície: quem disse ou acredita que consumidor e cidadão são sinônimos? Não são. Tanto é assim que tem brasileiro com dois celulares, TV de plasma e iogurte na geladeira frost free, mas sem saúde, sem segurança pública e sem saber escrever um O com um copo.
No Nordeste, a taxa de analfabetos triplica: 25% da população acima de 7 anos, cenário equivalente ao da Índia. Entre a população adulta nordestina, a Pnad aponta que um entre cada 4 homens com mais de 25 anos é incapaz de escrever um bilhete, identificar sem ajuda de terceiros o itinerário de um ônibus ou ler qualquer instrução. Como os complexos brasileiros, sejam de superioridade ou inferioridade, só permitem que a população enxergue-se a partir da comparação com os países ricos ou com os miseráveis, eis o índice de analfabetismo em países como Estados Unidos, Alemanha e Nova Zelândia: em torno de 1%. É verdade que as coisas não mudaram muito em relação à última Pnad, quando o número de analfabetos no Brasil era de 12,866 milhões. O problema está menos na comparação entre os números absolutos de analfabetos de 2011 e de 2012 e mais no que eles revelam quase discretamente: em vez de fazer cair o número de analfabetos no país, os governos, seja nas esferas federal, estadual ou municipal, conseguiram a proeza de fazer o número de analfabetos crescer.
Na Bahia, onde se cultiva o talento de transformar até tragédia em festa, mesmo que para isso seja preciso torturar números, a tradução dos números do analfabetismo local chegou a ser engraçada. Vale reiterar que, no contexto nacional, os estados onde houve maior crescimento do analfabetismo foram justamente Bahia, Tocantins, Paraíba e Pernambuco. Como isso foi traduzido por aqui? Retirando-se a Bahia do contexto do país, inserindo-a apenas no cenário nordestino, onde todos os estados não têm nada a comemorar, e falando-se não do aumento do número, mas enfatizando-se que, no Nordeste, a Bahia é o melhor estado em números (absolutos) de analfabetos. 15,86% dos baianos são analfabetos. Com ou sem Topa (Todos Pela Alfabetização), programa do governo do estado para alfabetização de adultos.
Nem precisaria repetir, mas não custa nada. Quando se fala em brasileiros resgatados da miséria, isso significa basicamente que essas pessoas passaram a ter (mais) comida na mesa e que, para além da comida, foram incluídas no admirável mundo do consumo. E é aí que o conto de fadas contado pelas políticas públicas não resiste a reflexões que se pretendam ir além da superfície: quem disse ou acredita que consumidor e cidadão são sinônimos? Não são. Tanto é assim que tem brasileiro com dois celulares, TV de plasma e iogurte na geladeira frost free, mas sem saúde, sem segurança pública e sem saber escrever um O com um copo.
* Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Ufba
Nenhum comentário:
Postar um comentário