quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A EXPERIENCIA "CANNES"



Em maio último, eu estive no festival de Cannes para uma exibição «work in progress» de Depois da Chuva, meu primeiro longa metragem, co-dirigido com Marília Hughes Guerreiro. O nosso filme ainda não está finalizado e foi apresentado para programadores de diversos festivais, além de agentes de venda e distribuidores. Trata-se de uma iniciativa das mais importantes do BAFICI (Buenos Aires Festival de Cine Independente), que selecionou cinco filmes da América Latina, entre 248, para apresentá-los em Cannes, o principal festival de cinema da Europa.
A sessão funcionou muito bem, a sala estava lotada e muitos vieram conversar com a gente depois, interessados em nosso filme. Agora, é partir para finalizar edição e ir para a pós-produção para que o filme seja submetido aos festivais brasileiros e estrangeiros. Volto a falar sobre “Depois da Chuva” mais para frente.
Estar em Cannes é sempre uma experiência muito forte. O festival é intenso, porque concentrado como nenhum outro. São poucas salas para os filmes em competição, todas no Palácio dos Festivais, um prédio muito feio, sem nenhuma graça, que me lembra um shopping qualquer desses construídos nos últimos tempos pela cidade. Um prédio feio, mas bastante funcional, diga-se!
No mesmo local, outras dezenas de pequenas salas servem ao «Marché du Film», grande mercado que reúne distribuidores, exibidores, agentes de venda e curadores de todo o mundo.
As salas da Quinzena dos Realizadores e da Semana da Crítica, mostras paralelas de Cannes, ficam um pouco mais distante. Nada que uma caminhada tranquila de menos de dez minutos não resolva.
Via de regra em Cannes, somente profissionais acompanham os filmes e visitam os stands do mercado. Difícil não esbarrar em alguém que você queira encontrar ou conhecer, muitas vezes nas longas filas para os filmes mais disputados.
Estamos falando de milhares de pessoas envolvidas diretamente com cinema, de alguma forma. Para a população da cidade e curiosos em geral, há uma única grande exibição por dia, na praia. Com o frio que se abateu sobre o sul da França esse ano, as sessões na areia, noturnas, estavam vazias, mesmo contando com filmes restaurados como Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, e A General, de Buster Keaton.
Cannes reúne quantidade impressionante de jornalistas e eles possuem prioridade sobre tudo e quase todos. Essa é uma das chaves para entender o sucesso do festival. Há um sistema hierárquico estabelecido, que leva em conta a assiduidade com que o jornalista vai ao festival, além da importância do veículo que você representa. Assim, se garante que os mais influentes meios de comunicação estejam sempre nas salas de projeção. Eles irão assistir e divulgar, em primeira mão, boa parte dos filmes.
Cannes é o mais estressante e, ao mesmo tempo, o mais poderoso festival de cinema do planeta. Há quem rejeite esse modelo e eu compreendo perfeitamente. Pode-se viver um dia terrível, perdido, numa sequência interminável de péssimos filmes e encontros, numa orla marítima sem graça e que não perde em frivolidade besta para Miami. Os dias de chuva desse ano, em filas intermináveis, merecem ser esquecidos para todo o sempre.
Mas, o contrário também é possível: em salas perfeitamente equipadas, é possível se deparar com uma série de filmes incríveis, que serão vistos apenas em Cannes, além de ocorrer encontros com cineastas que você admira, produtores, curadores, exibidores e agentes culturais apaixonados que te lançam novas possibilidades de trabalho.
E assim foi com L’Inconnu du lac, de Alain Guiraudie, filme estranho, diferente de quase tudo o que se vê por aí e que me surpreendeu por uma tenebrosa tentação que o medo e o perigo podem exercer sobre nós. É um longa com protagonistas gays, mas limitá-lo a um filme gay seria terrível equívoco. A fotografia de L’Inconnu é primorosaAlain Guiraudie foi considerado o Melhor Diretor na Mostra Un Certain Regard.
A Touch of Sin, do chinês Jia Jhanque, faz um retrato de uma China caótica, numa confusão sem fim entre os símbolos máximos do comunismo e o sistema capitalista, que se instala de uma forma cada vez mais forte. Não há sensacionalismo em suas imagens, numa forma de filmar sóbria, embora de extrema violência. Melhor roteiro na competição oficial.
Tal Pai tal filho, do japonês Kore eda, é um filme feito para tocar o coração, mas de uma forma elegante e que nos lembra o cinema do mestre Ozu. Temos a família moderna japonesa no centro da trama, em um conflito em que bebês são trocados na maternidade. Pais diferentes devem decidir, passados dois anos de convivência com as crianças, com quem elas devem ficar. Viver com a família biológica? Um filme que possui algo reconhecível, nada exatamente original, mas que é muito bem conduzido e que merece ser visto por uma platéia grande. Tal Pai tal Filhoganhou prêmio especial do júri, competição oficial.
Outro filme que muito me impressionou foi Northe, the End of History, de Lav Diaz. Um filme de quatro horas de duração, que passam muito facilmente. Espécie de Crime e Castigo em solo filipino, filmado com muita segurança e sobriedade, diz respeito às questões de países pobres, mas com muita dignidade. Caso raro! Lav Diaz mostra como se vive em situações precárias, mas sem nenhum alarde, nenhuma espécie de sensacionalismo ou clichê por isso.
Lamentavelmente, eu perdi o filme ganhador da Palma de Ouro, La Vie D’Adele, de Abdellatif Kechiche. Tentei em duas oportunidades, mas as filas gigantescas me desviaram do caminho. Acho importante que um longa que narra uma história de amor entre duas mulheres seja premiado num momento em que a própria França passa por um momento de tamanha intolerâncoa.
Talvez os dois mais belos momentos em Cannes, para mim, foram no Cannes Classics, sessão de filmes restaurados. O festival deixa claro que não está preocupado apenas com o novo, mas também com a memória do nosso cinema.
O Gosto de Saquê, realizado em 1962, foi o último filme de Yasujiro Ozu. O longa foi restaurado pelos estúdios japoneses Shochiku especialmente para o 110º aniversário do nascimento de seu diretor. Como do hábito, Ozu é sutil, demarca com extrema precisão a passagem de um país ainda traumatizado pela Segunda Grande Guerra, mas entusiasmado pela riqueza do capitalismo que se impõe sobre os velhos costumes. A apresentação do longa, em Cannes, foi realizada pelos cineastas Kore eda e Jia Jhanque. Esse último, chinês, contou à platéia como para ele e sua geração os filmes de Ozu foram revolucionários, sobretudo por retratar a família no cinema, algo que não existia na China. Lembro aqui da ancestral rivalidade entre Japão e China para ressaltar a emoção de ver Jia Jhanque reverenciando o mais importante dos cineastas japoneses.
Vertigo, de Alfred Hitchcock, também restaurado e exibido em 4K, foi algo inesquecível. Na platéia, a estrela do filme, Kim Novak, já aos 80 anos de idade. Ela se retirou do cinema, no início dos anos 70 e mencionou que Vertigo a faz existir até hoje para o mundo. Kim Novak lembrou que o filme foi mal recebido quando do seu lançamento, em 1958. Foram necessários alguns anos para que a força dessa obra incrível fosse reconhecida pelo público e critica. Ao rever Vertigo, creio que eu entendi a desconfiança que o filme suscitou, em princípio. Parece com um filme policial “normal”, onde o mocinho injustiçado partirá para um acerto de contas. Mas, o filme dá uma grande virada, frustra os mais apressados e constrói um mocinho que se transforma em um ser obsessivo, graças aos transtornos criados na primeira parte da trama.
Há muito ainda o que relatar sobre a “Experiência Cannes”. No próximo texto, creio ser bom tratar sobre a participação brasileira no festival. Fiquemos por aqui, por enquanto!

            Cláudio Marques

De pais e avós baianos, Cláudio Marques nasceu em Campinas, São Paulo, em 1970, e mora em Salvador desde 1982. Cláudio é fundador e coordenador do Panorama Internacional Coisa de Cinema desde 2003, um dos mais importantes festivais de cinema do Brasil. Diretor, roteirista, produtor e montador de 6 curtas metragens, entre eles Carreto (52 festivais e 22 prêmios) e Nego Fugido (32 festivais e 12 prêmios), além do longa em pós-produção Depois da Chuva. Todos foram co-dirigidos com Marília Hughes.

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