quinta-feira, 24 de novembro de 2011

LEMBRANÇA DE FAMÍLIA

Annette, já vos falei dela, já conhecem.
Convencida de suas privilegiadas origens, sempre olhou seus interlocutores com lente analítica, pesando-lhes o valor social. É rápida na catalogação. Sem piedade. Pouco menciona sua ascendência, mas, gentalhas, fiquem sabendo.
Neta do poeta inglês Henry Moore, hoje mais lembrado por ter sido amigão de Lord Byron, minha avó era filha de elegante dentista parisiense. Afinal, no dia de seu nascimento, a própria rainha Victoria não mandara um xale á jovem mãe? Lembro ter visto em Tanger o “manton de Manila” cobrindo artisticamente parte do piano de cauda. Desapareceu, devorado pelas traças. O piano também.
No fim do século XIX, só se fala em Paris do barão Haussman que derrubou toda aquela velharia gótica para cortar a capital com magníficas perspectivas. Rue de Rivoli, Avenue de l´Opéra e Boulevard des Capucines onde meu bisavô tem opulento gabinete, pouco distante da Avenue d´Iéna, preto do Trocadero, onde mora, são endereços dos happy fews.
Agora eu pergunto: como ser requintado dentista num tempo onde fio dental, anestésicos e um bocado de outros apetrechos ainda não foram inventados e a cadeira do paciente lembra as delícias da Inquisição.? Não dá para minha cabecinha entender. Nem mesmo a palavra “odontologia” ainda existe!
Da tia-avó Jane se fala pouco e a boca fechada. Terei que esperar 2006 para ter a chave de tanta discrição. As conversas familiares mencionam o feitio difícil de ambas as irmãs, ambas sendo mandonas e donas da Razão. Mas Jane não foi favorecida pela natureza. Maciça, pesada, pragmática, nunca casou, coitada, enquanto Annette, pelo contrário, mesmo baixinha e franzina, sem ser nenhum prêmio de beleza, transpira charme, espírito, sedução, elegância. Costuma ser a rainha das rodas sociais, sabe receber, decide quem é freqüentável e quem não é. Tem evidente lado bostoniano.
Recuemos no tempo. Na véspera da revolução bolchevique, Yasha encontra Annette algures na Suíça. Esqueci de mencionar que também temos um ramo suíço do lado maternal, dos chocolateiros Peter e Caillé, mais tarde Nestlé. A donzela acaba de vencer um prêmio de piano no Conservatório de Paris onde foi colega de ninguém menos que o genial Alfred Cortot.
Uma jovem “comme il faut” não pode ganhar a vida tocando piano, mas pode dar concertos de beneficência. Numa sala que suponho modesta, dois russos sentam na primeira fila. Após a primeira valsa de Chopin – ou será um noturno? – um bigodudo vira para o outro e sussurra-lhe no ouvido. “Esta mulher será minha esposa”.
Mal acaba o concerto, sobe no pequeno palco e convida a jovem, nem tão ruborizada como exigiria a situação, a tomar chá o dia seguinte. Ela – que ousadia! –aceita sem pestanejar. E assim, numa tarde que supomos de muito frio, o armário siberiano e a cristaleira britânica levantam um dedinho sofisticado ao beber uma delicada xícara de Earl Grey indiano. Com duas gotas de creme de leite, s´il vous plait.
Só que para Yasha isto não é comida. Encomenda illico dois ovos fritos “A senhorita tem a certeza que não quer?” Mas onde já se viu tomar ovos fritos no tea time?
Para o resto da vida Annette lamentará não ter aceitado. Cheiravam tão bem…
Como continua o romanesco romance? Opiniões divergem, mas à luz das cartas encontradas meio-século mais tarde, o escândalo recebe os atrasados holofotes.
Annette e Yasha não casam, fogem. De quê, de quem? Nunca saberemos. Fogem para bem longe. Escorregam pelas neves prateadas dos Alpes, voam nas asas de brancos alazães por Castilha e Andaluzia ouvindo a “Habanera” de Bizet, embarcam numa leve fragata de velas azuladas que será com certeza perseguida por sanguinários piratas e chegam, exaustos, mas salvos, a Tanger, porta do conturbado reinado de Marrakesh.
A intenção é ir até a Cidade Vermelha. Mas são duas semanas de caravana, montados em mareantes camelos, com a real ameaça de razzias beduínas. Além do mais, Annette está com tonturas e vômitos. Wladimir, meu pai, não tardará a reclamar na britânica barriga. Melhor ficar por aqui e refazer a vida, já que o Czar Nicolai foi fuzilado e as portas da Rússia fecharam para muito tempo.
E é assim que meu avô empreende os primeiros edifícios europeus da cidade, fora da parte antiga, e constrói as primeiras estradas e pontes de Tanger a Azilah. Guardo as fotos para conferência. Quantos filhos têm quando resolvem “regularizar a situação”? Ainda não fiz as contas. Outra carta revela: atravessaram o estreito para casar de papel passado em Gibraltar. Discretamente.
E a tia-avó Jane? Pois é. Ela continua esquecida, escondida nas gavetas poeirentas das lembranças familiares. Deve ser alguém com notável força, já que, desde 1900 e pouco, ela trabalha em banco, chegando ao posto invejado de diretora. E o feminismo ainda não fora inventado! Hoje, seria ministro das Finanças.
O tempo passa… Já fui criança, servi exército, vivi, atravessei o Atlântico para morar na Bahia. Jane faleceu, como meus avós, pai, mãe, amigos queridos…
Resta-me uma velha irmã do pai, Nadia, morando em Tanger, sozinha numa casa estilo Bauhaus, grande demais. Aproveita uma visita, meses atrás – ou foi o ano passado? – para me dar velhas fotos de família. Um monte, um Himalaia de fotos.
Vou vasculhando, anotando prováveis nomes e datas no verso. Uma foto retém a atenção. Pode ter sido tirada por volta de 1910.
“E quem é este curioso par?”
- Ah! Pois é a tia Jane, com uma amiga”
- Porque ela está vestida assim?
- Não sei, algum baile a fantasia…
Prefiro o silêncio.
A tão misteriosa tia-avó está encostada ao corrimão de uma escada, vestida com smoking de homem. Bem cortado, o smoking. Borboleta certinha, sapatos lustrados. Cabelo farto cortado curto, tipo George Sand. Seu olhar é o de feliz vencedora. No meio da escada, uma moça, lindo perfil, mais nova, fina e frágil no seu vestido longo e seu chapéu inclinado, um cachorrinho nos braços, sorri para ela com imensa ternura…
Dimitri Ganzelevitch
 Salvador, 22 de dezembro de 2007.

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