No documentário José e Pilar, a paisagem despojada até a aridez que Saramago contemplava desde sua casa das ilhas Canárias, só pode levar à introspecção. A escolha do lugar já é, em si, um desafio. Viver ao pé de um vulcão, por velho que ele seja, não deixa de imprimir ao cotidiano uma ameaça silenciosa e subjacente, reduzindo as banalidades existenciais a um minimalismo descartável. Muito me marcou a óbvia contrariedade de Pilar, fiel e atenciosa companheira, quando o escritor escapa do aconchego doméstico para, solitário, escalar a Montanha Branca. Simples reação de quem se preocupa com a saúde do amado? Os sentimentos envolvidos no caso são mais complexos. Ao acompanhar o desenrolar do filme, me veio à mente o exemplo de outras companheiras, sejam elas sentimentais ou meramente profissionais, de homens que construíram uma obra e uma reputação ultrapassando fronteiras. Temos fartos exemplos na história da cultura e da ciência pelo mundo afora e mesmo aqui, na Bahia.
Quem cria sente com freqüência o peso da solidão. Aparecendo alguém que se mostra disponível e eficiente, carinhoso até, de repente o criador delega os poderes do dia a dia para entregar-se por completo à construção iniciada. Mas é também uma faca de dois gumes. Agora poderosa, ela – ou eventualmente ele, o sexo, no caso, sendo aleatório – vai começar por organizar o espaço e a documentação, ordenar a agenda, filtrar as visitas, deixando a paz, a harmonia e a segurança ocupar o ambiente de trabalho e sustentar a dinâmica do gênio. Aos poucos tecer-se-á uma gaiola leve e impermeável, tão invisível quanto intransponível. O problema é que nem sempre esta teia de atenções está isenta de interesses escusos. Num momento do filme, um jornalista, insistente até a inconveniência, coloca esta problemática de forma crua. A decisão de José Saramago escapar silenciosamente da casa e arriscar a vida ao subir os 600 íngremes metros do vulcão é uma metáfora clara do desejo latente de liberdade, apesar de muito amor e cumplicidade.
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