Escrevi esta crônica ha uns três anos, mas o acontecido é bem mais antigo...
Descendo a ladeira do Pelô, domingo de noite enquanto o Olodum ô-ô-ô joga generosos decibéis na multidão em transe. Mocassins velhos, bermudão cansado e camiseta branca de alguma propaganda irrelevante. Sem lenço, mas com documento. To voltando pra casa, fugindo da zoada e da tensão que costuram por estas bandas o fim do fim de semana. Chegando lá embaixo do largo, de repente, saco um agrupamento silencioso. O quê que é, brozer? Aproximo-me para assistir ao deprimente, mas costumeiro chô. Uma patrulha da PM dando uma baita surra em duas adolescentes que sempre vejo pelo bairro. Magrinhas, ilustração perfeita do chavão “negras, pobres e fedidas”. Pode trocar uma letra na última palavra. Ô xente! Não acredito no que estou vendo. E tudo em frente do público da rua, na maior cara-de-pau! Sem tempo para pensar – foi sempre meu mal, nunca penso duas vezes - me precipito e grito:
“Mas vocês estão batendo em duas crianças!”.
O sargento, também negro, vira para mim, me olha e sem a mínima hesitação, começa a bater gostoso com coronhadas na minha careca. Pelo menos uma coisa boa da qual ficarei eternamente grato ao nobre oficial: não usou o outro lado da arma...
De repente, me vejo rodeado de militares com cara de poucos amigos e fedor à cachaça que me agridem sem rodeio. Afinal sou de maior, né?! Então por que não aproveitar, em boa consciência, o excesso de adrenalina?
Após rasgar minha camiseta, sangue escorregando pela face, sou algemado e levado ao posto policial da Rua João de Deus. Nome lindo tem esta rua, não acha?
E lá vou eu, com pm pela frente e pm por trás, mãos nas costas, sangrando, camiseta rasgada, desfilando pelo Pelô em festa. E olhe que sou branco legítimo. Imaginem se não fosse...Um conhecido, membro ativo do MNU, me pergunta o que passa e escolhe não insistir.
No posto, o deboche é geral e eu, com aspecto de suspeito, no meio, feito perigoso marginal. O sargento, demonstrando alto nível de criatividade, me apresenta com chefe da quadrilha que assalta os turistas. As duas mocinhas, uma delas caída no chão, desmaiada, seriam minhas maquiavélicas cúmplices!
O negócio começa a ficar preto pro meu lado.
Mas, como nas comédias do século XVII, o Deus ex-machina chega na aparência de um militar civil, conhecido meu, que interroga:
“Mas Dimitri, o que você está fazendo aqui?”
-Pergunte a eles!
Foi assim que me livrei de uma situação tão desconfortável quanto inusitada.
Ze dei after, reagi. Fonei a imprensa pra entrevista coletiva, que nem Sonia Braga, na AOB que disponibilizou um espaço a meu pedido. De forma que, pela primeira vez na minha vida e, espero, a última, tive minha foto na página policial do jornal A Tarde sob o título “Francês é agredido pela policia militar no Pelourinho”.
Merecidos quinze minutos de fama. Acordo, ainda hoje, no meio da noite para me contemplar, lindo-maravilhoso mártir que nem São Sebastião.
Quem ficou uma fera foi o Cabeça Branca, pois estava na véspera de anunciar o fabuloso restauro do Pelourinho, com muito buldozer, betoneira, andaime, guindaste, rios de dinheiro se perdendo no semi-árido e notável economia de arqueólogo e historiador.
Fui convencido a ir até o quartel em Ondina (ou foi na Pituba?) para confrontação com os verdadeiros marginais, aqueles de uniforme. Vestido no capricho com meu quase-Armani bege, camisa azul, gravata de listras e sapatos reluzentes, passei, soberbo, perto dos soldados que, na ressaca, tinham perdido qualquer vestígio de arrogância. Reconheci dois deles.
Foram expulsos da corporação, incluindo o fedorento sargento. Pelo menos foi o que me afirmou, com discurso atualizado, um muito comunicativo oficial.
Eu teria participado do fim de uma época.
A partir desta data, começaria uma nova era, com uma polícia mais consciente e humana. Claro que acreditei.
Foi em 1992...
Dimitri Ganzelevitch Salvador 6 de setembro de 2008.
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