Devo ter uns dezenove anos. Cabelo farto, quem diria, magro, quem diria, atordoado com o mundo que se desvenda á minha mente, ouvidos e olhos. Ávido por tudo abraçar. Minha mãe e Antônio são muito amigos do casal Madeleine e Émile Vuillermoz, respeitado crítico musical, autor da “Histoire de la Musique” que ainda tenho. Aliás, a minha é uma edição tardia (1973) do Livre de Poche com capa de Raoul Duffy, mas ainda uso com freqüência. Émile nos leva a Salle Pleyel, ou Salle Gaveau, não sei bem. Passado meio-século, fica mais difícil lembrar certas datas e certos lugares.
Esta noite será muito especial.
Nos anos 50, ir ao teatro ou ao concerto é uma cerimônia quase mística. Terno e gravata quando não smoking, vestido longo ou, pelo menos, do maior requinte possível. Cabeleireiro. Perfume. Jóias. Casaco de peles. Beija-mão. É a première de Canticum Sacrum, obra de Igor Stravinsky. O próprio vai reger. Na mesma fila, três cadeiras a minha esquerda, a deslumbrante atriz Laureen Bacall. Veio sem o Humphrey. Do extraordinário olhar ainda lembro bem, isto sim. A sala está repleta. Todos conversam, investigando quem está, alguns fazem sinais com a mão aos amigos mais distantes. O teatro começa na sala. Sente-se uma excitação geral. Não é a qualquer momento que o famoso compositor vem de Nova-Iorque para apresentar uma criação nova.
Mais uma vez, ele irá perturbar os melômanos com inquietações sonoras.
Quem sou eu, mal saído da adolescência, para entender algo deste evento musical que amanhã vai encher os jornais de discursos teóricos contra e a favor, todos banhados em nervosismo e argumentos bélicos? Entendo vagamente que estou participando de uma página importante para a história da cultura ocidental.
No intervalo, vamos para o vasto salão onde o público exaltado desfila. O tom das conversas nunca esteve tão alto. De repente, o próprio maestro chega, longo pássaro preto de bico curvado, falando com uns e outros. Aproxima-se do nosso pequeno grupo. Vuillermoz, que foi amigo de Ravel e Debussy, conhece Stravinsky há mais de vinte anos. O maestro russo é esguio, não muito alto e, confessemos, bastante feio.
Mas estou defronte ao criador do revolucionário Pássaro de fogo, encomendado por Diaghilev no princípio do século XX, do escandaloso Sacro da Primavera, que quase terminou em batalha no teatro dos Champs-Élysées. O homem que descontruiu a música, que transformou o piano em brutal instrumento de percussão, pendurando Chopin no armário dos já-foi. O homem que mudara os rumos da música como Picasso os da Arte ou Gropius da Arquitetura. Aquele que havia dito “Não basta violentar Euterpe, é preciso faze-lhe um filho!”.
Distraído, ele aperta minha mão, no exato momento que Laureen Bacall chega para também cumprimentá-lo. Alguém poderia existir ao lado da dona destes olhos profundos?
Era realmente jovem demais na época para entender da importância do encontro com o tornado genial. Hoje, contemplo minha mão direita cheia de manchas, enrugada, veias aparentes, uma cicatriz, resultado de queda. Ela apertou, geralmente por mero acaso, a mão de alguns dos homens e mulheres mais importantes do século XX. Juscelino Kubitschek, Umberto II da Itália, Yehudi Menuhin, Amália Rodrigues, Dorival Caymmi, Carmen Amaya, Martha Graham, Igor Stravinsky, Margot Fonteyn, as últimas princesas otomanas e uns poucos outros que participaram da construção de uma nova sociedade...
Algo deles me foi deixado. Nada do gênio, claro, mas como um pedaço de luz, uma faísca que me faz sentir diferente. De quê? Não sei... diferente, simplesmente.
Dimitri Ganzelevitch
1 de setembro de 2008
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