sábado, 1 de novembro de 2014

OS PAPA-ENTERROS


 MARCELO TORRES

Por quem dobrava o sino, não importava, o fato é que ele nunca, jamais perdia um enterro. "Um ato de fé e piedade cristã", de acordo com a nota de falecimento lida pelo sacristão Tõe de Maroca no alto-falante da igreja.

"A família enlutada agradece a todos que comparecerem a este ato de fé e piedade cristã", este era o último trecho do convite para o sepultamento, fosse enterro de anjo, fosse de pecador.

Tio Nequinha era como chamávamos Manoel Dias da Cruz, que não era nosso tio - nós o tratávamos assim por respeito, por ser parente e também porque ele não casou, ficou para titio.

O ritual era tão certo quanto a luz do dia: assim que Tõe de Maroca, lá do alto da torre da igreja, começava a badalar o sino, naquela batida triste e sombria, Tio Nequinha saía de sua casa, ali na praça, e ia encontrar a procissão fúnebre.

Saía sozinho, porque vivia sozinho, e ia em seu passo lento, coberto de luto dos pés à cabeça - os sapatos, as calças, meias, a camisa de manga comprida, chapéu e luvas, tudo preto.

Tio Nequinha não era de chorar - pelo menos eu nunca o vi chorando. Também não era de muitos cumprimentos. Quando saudava alguém era com um mero aceno. Não cumprimentava nem os parentes do morto ou da morta.

Pegava a marcha fúnebre já no meio da praça e seguia, calado, ensimesmado, respeitoso.

O cortejo que saía da igreja atravessava a praça, dobrava a esquina do mercado, depois quebrava à esquerda, descia uma ladeirinha, passava por uma pequena baixada e subia outra ladeira até o cemitério.

Em enterros, homens e mulheres choram, rezam, pegam na alça do caixão, consolam a família, demonstrando sentimento. Tio Nequinha, não. Não chorava não consolava, não pegava alça de caixão. E não entrava no cemitério.

Em vida, nunca pôs os pés naquele lugar que o povo chama de "cidade dos pés juntos". Só ia até o portão, onde se benzia uma vez, dobrava ligeiramente o joelho direito, se benzia mais três vezes e voltava para casa.

Em todo e qualquer enterro era assim.

Certa vez, Telmo de Totó, um seu sobrinho de sangue, um dos poucos com quem trocava duas palavras, indagou-lhe o seguinte:

- Tio Nequinha, por que o senhor nunca entra no cemitério? Por que sempre se benze e dá meia-volta?

- Ora, fiinho, o que não é visto não é desejado – ele respondeu ao sobrinho, como a falar a todo um povo.

Reza a lenda que uma vez perguntaram se ele, Nequinha, queria ser como Matusalém, aquele que teria vivido novecentos e tantos anos.

- Não - ele teria respondido. - Eu não vou morrer.

Infelizmente, Tio Nequinha um dia teve que partir. Ele se foi perto de fazer cem anos. Algo que para nós outros é muito, mas para ele deve ter sido um nada.

Na sua ausência, quem assumiu o posto de papa-enterro foi meu irmão Arizio. Que não apenas é presença certa no enterro e entra no cemitério, como também vai ao velório e à missa de sétimo dia. Mas essa é outra história, e eu a contarei depois.

(marcelocronista@gmail.com)

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