segunda-feira, 1 de setembro de 2014

JEHOVÁ, O OUTRO...

... O DAS NOITES E DOS SONHOS
Florisvaldo Mattos
Graças à gentileza de uma amiga do Facebook, a advogada Ana Angélica Marinho, de quem recebi prazerosamente um exemplar como brinde, estou relendo “A Cidade Que Não Dorme – Crônicas Noturnas de São Salvador da Bahia” (2ª edição, 1994), de Jehová de Carvalho (1930-2006), saudoso jornalista, cronista poeta, advogado trabalhista e, sobretudo, alto ícone da boemia baiana, da estirpe de um José Miranda Filho (o célebre Mirandão, personagem de Jorge Amado, em “Dona Flor e seus dois maridos”), Nilson de Oliva César (o Pixoxó, irmão da grande atriz Nilda Spencer), Enir Pereira dos Santos (Gato Preto, colunista do “Jornal da Bahia”), Nino Guimarães. Com ele, Jehová, convivi em tempos e lugares de serviço e companhias saudáveis, como restaurantes Cacique, Porto do Moreira e Trivial de Dona Maria; míticos Anjo Azul, Tabaris Night Club, Metrô e Rumba Dancing, inocentes botecos, como o Rio Verde, Torre Eifel, Triunfo, Varandá e o Raso da Catarina, de Franco Barreto, e os que à época os mais velhos chamavam de randevu (do francês “rendez-vous”), entre outros, quase todos hoje apenas entrevistos sob a névoa de noites multicoloridas que se foram. Leio e, extasiado, a cada crônica, recordo a cidade transparente e suave que também se foi e que, um dia, o sempre saudoso contista Vasconcelos Maia recordava como “ideal para se viver – tranquila, pacata, sem assaltos”, e que outro saudosista, Jorge Amado, certa vez, assegurou ter sido ”deliciosa e tranquila, uma cidade muito agradável de se viver”. Como poeta e cronista, Jehová sentou praça na Bahia como escriba de boa pena. O mesmo Jorge Amado via-o “romântico e sensual”, com uma escrita “de fácil entendimento” – um “canto nascido da vida popular, dirigido ao povo”, enquanto o crítico João Carlos Teixeira Gomes tinha-o como uma das mais belas vozes do lirismo baiano, captado em sua vivência cotidiana como homem do povo”. Por múltiplo, não dá para reproduzir o Jehová cronista; então resolvi optar pelo poeta, transcrevendo (abaixo) um de seus poemas, colhido num ensaio de Raimundo Dalvo Costa (“A poesia de Jehová de Carvalho”, 2011), para quem “a sua poesia é lírica, romântica, simbolista, moderna (não importa o gênero literário), carregada de musicalidade, paradoxos, idealismo amoroso, niilismo e de cultura popular, apresentando uma linguagem nada convencional, retratando o cotidiano, a história e a cultura do povo baiano”. Está aí um exemplo. 

ROMARIA NOTURNA
Jehová de Carvalho

A noite ventre de aurora
eterno imenso fecundo
toca os seus cabelos negros
no corpo exausto do mundo.
Me larga sono me deixa
que este murmúrio e este açoite
levam a noite de minh´alma
a alma negra da noite.
escuto meu passo de ontem
que me apavora e me assombra
errando como um duende
perdido dentro da sombra
Há um gemido incontido
que sobre o asfalto flutua
antigas dores do tempo
n’alma de pedra da rua
No preço de uma cachaça
do copo de João Saul 
há balanços de saveiros
e sopros de vento sul
e noites de pescaria
e curriacos-tucus
rompendo o peito das águas
mordido de guaiamus
Tudo marcam modorrentos
estes meus dedos noturnos

Momentos de cabarés
com lantejoulas chinesas
e girândolas tremendo
com reticências acesas
e tristezas volitando
candelabros intangidos
vacilantes e pendentes
de tetos inconcebidos.

Trompetes embriagados
se arrastando nas escalas
chorando ritmos loucos
que repercutem nas salas.
Tudo marcam modorrentos
estes meus dedos noturnos.
Mas no quarto de Clarice
há saudades masculinas
que se escondem nos tecidos
de avermelhadas cortinas
e o nome de um marinheiro
cheio de ausência e viagem
sobre as tetas de Clarice
cobertas de tatuagem.

Boquinha traz duas pernas
da maldita; não demora
que a erva é na preguiça
mas só gimbra até dez horas
Meia noite, mês passado
houve uns esp’ritos por lá
de zarro se espiantaram
mas foi esbirro fechar.
O que tem não me endoidece
porque esta perna é minha.
Tou nas bocas não se esquece
mas vai depressa Boquinha. 
No bolso da calça curta
de Boquinha não há pão.
mas, um baralho escondido
num maço de papelão.

E cedo no bando afoito
de outros moleques fregueses
do crime apostas nas chapas
dos automóveis burgueses
perambula depois deita
sobre um passeio qualquer
até que a Bahia acorde
do seu rico canapé.
Na igreja de São Francisco
cospe à face da anciã
que ainda dorme coberta
da fria paz da manhã.
E enquanto a alma da igreja
se inflama de incenso e prece
romeira de outros caminhos
minha esperança estremece.  

Ó noite! Ventre de aurora.
Eterno. Imenso. Fecundo.
Toca os teus cabelos negros
no corpo exausto do mundo.

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