Joãozinho
Trinta tinha razão...
Na escuridão da
meia-noite, o aeroporto de Cotonu lembra alguma rodoviária do interior do
Piauí. Após atravessar espaços indefinidos, ocupados por tijolos, vigas e
areias – cuidado com os buracos! – a saída não deixa de transmitir certa
angústia. Curto circuito, greve dos funcionários de eletricidade? É um mundo de
sombras, de repente transformadas em fugazes tochas coloridas quando iluminadas
por faróis. Relâmpagos de vestimentas alegres, imediatamente devolvidas ao seu
estado de sombras.
Nesta noite tropical só
brilham os sorrisos do grupo que veio nos receber. E as estrelas, talvez. São
um total de treze, o total da companhia de teatro que o André Jolly levou dois
meses antes ao Brasil para uma peça sobre o Pierre Verger
Embarcamos até o Hotel
de La Plage num velho taxi pago por estes amigos pobres, já que ainda não tenho
moeda local. Ao subir os degraus poeirentos, ouço o ritmo das ondas a bater na
praia vizinha, confirmando o romântico nome do estabelecimento. Calor pegajoso,
cansaço, garganta seca mais do que fome.
Médard nos leva a um
“maquis”. Dois quarteirões vestidos de escuridão-sempre. Na verdade não há
iluminação pública na maior cidade do Benin. Cada edifício ou casebre improvisa
sua luz. Suficiente para pontuar caminhos, insuficiente para evitar as
armadilhas das ruas mal calçadas.
O “Maquis Espoir de
Dieu” ainda está aberto. Simples barracão de madeira. Todos os botecos e
restaurantes são chamados de maquis. Lâmpada crua e nua. Som ensurdecedor, marca
cultural dos povos africanos, e não só. Peixe frito sem surpresa, com certeza
cansado pelo longo dia de espera. O prazer do reencontro após as aventuras
teatrais Brasil afora.
Dormir será difícil.
Colchão movediço, travesseiro escorregadio, refrigeração barulhenta. De manhã,
tento em vão abrir a janela. Ela foi condenada, definitivamente. Peço para
mudar de quarto. Pago caro o direito de subir até o primeiro andar, mas desta vez
a janela abre sobre uma varanda e assim entra o ar salino do Atlântico. Terá
passado por cima da igreja do Boqueirão, lá do outro lado do horizonte?
A
praia, enfim. Longa, hostil, mal cuidada, tal um muro acinzentado sustentando o
mar nervoso, pontuado de cargueiros.
Meia dúzia de coqueiros
parados no calor da manhã prova que o Benin tem mais em comum com a Bahia que simples
iniciais.
Despachados os
rotineiros rituais que precedem cada dia, estamos a caminho do grande mercado
de Dantopka. Cidade dentro da cidade. São Joaquim é fichinha. Não deveria nem
ter mencionado. Como chegamos lá? Montados em mototáxis, o único transporte
público deste país, já que ônibus é mais raro que Rolls-Royce conversível. Em
sete dias terei visto dois buzus, ambos de empresas multinacionais. Em
contrapartida, os mototáxis são como um rio, amarelo como os guarda-pós de seus
condutores.
Você é branco, cara de
“torista”? Discuta o preço antes de montar a lataria. E se prepare para o
perfume Escape Nº 5, pois Cotonu deve ser a capital mais poluída da galáxia. O
normal é pagar um ou dois francos CFA. Mas com seu aspecto, meu amigo, você vai
bancar pelo menos o dobro. Discuto, por questão de honra. Mas acabarei pagando
o dobro, por remorso. Vale a pena, só para ver se abrir um sorriso que nem
colgate.
Dantopka é um mundo
entre favela paulista e mercado holiudiano, da grande época do Cecil B. de
Mille. Tudo se carrega na cabeça, tudo se coloca em bacias de alumínio ou
cestas de vime. Galinhas, escovas, sapatos, panelas, cebolas, abacaxis, tudo. Outros
usam a bacia para pendurar cabides com roupa, butiques ambulantes que escondem
até quem os transportam. É uma catarata de cores e cheiros. Homens e mulheres
vest
em roupas que seriam ridículas num funcionário público inglês ou num
comerciante francês. Vestem roxo e vermelho, azul e laranja, verde e marrom.
Panos imensos amarrados em drapés ocasionais, estampas surrealistas, com
desenvoltura e elegância verdadeira de quem tem naturalidade. Estamos a
anos-luz do andar requebrado das giseles fashion. Fascínio total. A beleza de
todos, mesmo dos velhos, é tal, que me sinto engolido pela emoção. Cuidado que
a lágrima está perto, vou deslizar na senilidade absoluta e irreversível.
Salva-me lembrar que todos estes estampados vêm diretinho da Holanda, sim
senhor. Melhor esquecer a pororoca e exercer meu espírito crítico. Dissertemos
sobre o neo-colonialismo, mesmo correndo o risco de uma maratona de chavões.
Mas que entrar neste ventre comercial é uma forma de morrer e renascer para uma
nova realidade, ah! isto é, com certeza!
As crianças. As
crianças... Não são sempre e em qualquer parte, fonte perpétua de deslumbramento?
Sim, é claro... para você. Para mim, nem tanto. Mas lá, me derreto (bis). São
crianças de verdade. Olham como crianças. São tímidas, assustadas, intrigadas,
curiosas. E lindas. No Benin não existe criança feia, nem mesmo banal. Dá
vontade de roubá-las.
Distribuo bonequinhas vestidas de baianas a meninas que
nunca-jamais receberam algum presente. Não esquecerei o olhar maravilhado
daquela maltrapilha, sentada num semáforo, a mãe pedindo esmola. Papai Noel por
dez segundos. O mototáxi me leva
enquanto ela continua me olhando sem entender nem acreditar.
E haja poluição! Parece
que os carros, taxis e motos fizeram uma aposta diabólica para quem joga mais
monóxido de carbono acima de nois-coitados. Não é raro ver gente com nariz
escondido num lenço á la japonaise.
Um escafandro completo seria mais indicado.
Se
o asfalto está em falta ao longo das avenidas, não faz diferença. Todos os
espaços estão abarrotados de qualquer coisa que vender se possa. Aliás, as
estradas que levam para Abomei, Uidá ou Ketu são como imensos, longos,
intermináveis centros comerciais. Farinhas e botijões de gasolina são
apresentados sobre pedestal de velhos pneus. Os fazedores de presentes anunciam
sua arte por caixas artisticamente embrulhadas em papéis coloridos. O dourado é
a preferência. Joãozinho Trinta tinha razão. Você quer uma mala, um chapéu de
palha, um remédio para azia ou mau-olhar? É só passear entre nuvens de poeira e
mototáxis. Também tem água mineral e outras bebidas muito, mas muito coloridas
mesmo, química assegurada. A saúde é uma roleta russa.
(Segue!)
Dimitri
Ganzelevitch
Salvador,
1 de julho de 2003.
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