sexta-feira, 27 de junho de 2014

VIAGEM AO BENIN (1)


Joãozinho Trinta tinha razão...

Na escuridão da meia-noite, o aeroporto de Cotonu lembra alguma rodoviária do interior do Piauí. Após atravessar espaços indefinidos, ocupados por tijolos, vigas e areias – cuidado com os buracos! – a saída não deixa de transmitir certa angústia. Curto circuito, greve dos funcionários de eletricidade? É um mundo de sombras, de repente transformadas em fugazes tochas coloridas quando iluminadas por faróis. Relâmpagos de vestimentas alegres, imediatamente devolvidas ao seu estado de sombras.

Nesta noite tropical só brilham os sorrisos do grupo que veio nos receber. E as estrelas, talvez. São um total de treze, o total da companhia de teatro que o André Jolly levou dois meses antes ao Brasil para uma peça sobre o Pierre Verger


Embarcamos até o Hotel de La Plage num velho taxi pago por estes amigos pobres, já que ainda não tenho moeda local. Ao subir os degraus poeirentos, ouço o ritmo das ondas a bater na praia vizinha, confirmando o romântico nome do estabelecimento. Calor pegajoso, cansaço, garganta seca mais do que fome.

Médard nos leva a um “maquis”. Dois quarteirões vestidos de escuridão-sempre. Na verdade não há iluminação pública na maior cidade do Benin. Cada edifício ou casebre improvisa sua luz. Suficiente para pontuar caminhos, insuficiente para evitar as armadilhas das ruas mal calçadas.

O “Maquis Espoir de Dieu” ainda está aberto. Simples barracão de madeira. Todos os botecos e restaurantes são chamados de maquis. Lâmpada crua e nua. Som ensurdecedor, marca cultural dos povos africanos, e não só. Peixe frito sem surpresa, com certeza cansado pelo longo dia de espera. O prazer do reencontro após as aventuras teatrais Brasil afora.

Dormir será difícil. Colchão movediço, travesseiro escorregadio, refrigeração barulhenta. De manhã, tento em vão abrir a janela. Ela foi condenada, definitivamente. Peço para mudar de quarto. Pago caro o direito de subir até o primeiro andar, mas desta vez a janela abre sobre uma varanda e assim entra o ar salino do Atlântico. Terá passado por cima da igreja do Boqueirão, lá do outro lado do horizonte? 
A praia, enfim. Longa, hostil, mal cuidada, tal um muro acinzentado sustentando o mar nervoso, pontuado de cargueiros.
Meia dúzia de coqueiros parados no calor da manhã prova que o Benin tem mais em comum com a Bahia que simples iniciais.



Despachados os rotineiros rituais que precedem cada dia, estamos a caminho do grande mercado de Dantopka. Cidade dentro da cidade. São Joaquim é fichinha. Não deveria nem ter mencionado. Como chegamos lá? Montados em mototáxis, o único transporte público deste país, já que ônibus é mais raro que Rolls-Royce conversível. Em sete dias terei visto dois buzus, ambos de empresas multinacionais. Em contrapartida, os mototáxis são como um rio, amarelo como os guarda-pós de seus condutores.

Você é branco, cara de “torista”? Discuta o preço antes de montar a lataria. E se prepare para o perfume Escape Nº 5, pois Cotonu deve ser a capital mais poluída da galáxia. O normal é pagar um ou dois francos CFA. Mas com seu aspecto, meu amigo, você vai bancar pelo menos o dobro. Discuto, por questão de honra. Mas acabarei pagando o dobro, por remorso. Vale a pena, só para ver se abrir um sorriso que nem colgate.


Dantopka é um mundo entre favela paulista e mercado holiudiano, da grande época do Cecil B. de Mille. Tudo se carrega na cabeça, tudo se coloca em bacias de alumínio ou cestas de vime. Galinhas, escovas, sapatos, panelas, cebolas, abacaxis, tudo. Outros usam a bacia para pendurar cabides com roupa, butiques ambulantes que escondem até quem os transportam. É uma catarata de cores e cheiros. Homens e mulheres vest


em roupas que seriam ridículas num funcionário público inglês ou num comerciante francês. Vestem roxo e vermelho, azul e laranja, verde e marrom. Panos imensos amarrados em drapés ocasionais, estampas surrealistas, com desenvoltura e elegância verdadeira de quem tem naturalidade. Estamos a anos-luz do andar requebrado das giseles fashion. Fascínio total. A beleza de todos, mesmo dos velhos, é tal, que me sinto engolido pela emoção. Cuidado que a lágrima está perto, vou deslizar na senilidade absoluta e irreversível. Salva-me lembrar que todos estes estampados vêm diretinho da Holanda, sim senhor. Melhor esquecer a pororoca e exercer meu espírito crítico. Dissertemos sobre o neo-colonialismo, mesmo correndo o risco de uma maratona de chavões. Mas que entrar neste ventre comercial é uma forma de morrer e renascer para uma nova realidade, ah! isto é, com certeza!


As crianças. As crianças... Não são sempre e em qualquer parte, fonte perpétua de deslumbramento? Sim, é claro... para você. Para mim, nem tanto. Mas lá, me derreto (bis). São crianças de verdade. Olham como crianças. São tímidas, assustadas, intrigadas, curiosas. E lindas. No Benin não existe criança feia, nem mesmo banal. Dá vontade de roubá-las. 



Distribuo bonequinhas vestidas de baianas a meninas que nunca-jamais receberam algum presente. Não esquecerei o olhar maravilhado daquela maltrapilha, sentada num semáforo, a mãe pedindo esmola. Papai Noel por dez segundos.  O mototáxi me leva enquanto ela continua me olhando sem entender nem acreditar.
E haja poluição! Parece que os carros, taxis e motos fizeram uma aposta diabólica para quem joga mais monóxido de carbono acima de nois-coitados. Não é raro ver gente com nariz escondido num lenço á la japonaise. Um escafandro completo seria mais indicado.


Se o asfalto está em falta ao longo das avenidas, não faz diferença. Todos os espaços estão abarrotados de qualquer coisa que vender se possa. Aliás, as estradas que levam para Abomei, Uidá ou Ketu são como imensos, longos, intermináveis centros comerciais. Farinhas e botijões de gasolina são apresentados sobre pedestal de velhos pneus. Os fazedores de presentes anunciam sua arte por caixas artisticamente embrulhadas em papéis coloridos. O dourado é a preferência. Joãozinho Trinta tinha razão. Você quer uma mala, um chapéu de palha, um remédio para azia ou mau-olhar? É só passear entre nuvens de poeira e mototáxis. Também tem água mineral e outras bebidas muito, mas muito coloridas mesmo, química assegurada. A saúde é uma roleta russa.
(Segue!)

Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 1 de julho de 2003.         



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