domingo, 15 de setembro de 2013

EU E YUSUF

HELENA VIEIRA

O carro avançava quase que automaticamente, eu hipnotizada pela luz clara de começo de tarde. À frente, o Monte Kilimanjaro me convocava. No banco de passageiros, Yusuf falava sem parar sobre tudo e qualquer coisa. No banco de trás, a mulher dele, Loveness, que eu conheci ontem,  e o filho menor deles, Joshua, de três anos. Por uma fração de segundo, um relâmpago se acendeu dentro de mim.

Como é que eu vim parar aqui?

É uma longa história com dois dias de idade. Yusuf tem uma banca de frutas no mercado onde vou com frequência fazer compras. Ele é irmão de um vizinho, uma pessoa muito simpática e cortês, cuja casa frequento. Estou há três meses morando em Arusha, na Tanzânia. Acho que sou a única brasileira aqui.

Ontem, Yusuf se aproximou de mim enquanto eu estava concentrada escolhendo as laranjas e me disse que estava desesperado porque o filho de três anos não conseguia ir ao banheiro. No último dia nem mesmo xixi fazia mais.

Ele tinha levado o menino ao hospital, que pediu um raio X e depois disse que o problema era no intestino largo e só se resolveria com uma cirurgia. O médico mandou a família de volta para casa dizendo para esperar uma vaga no hospital para a operação.

“Minha mulher está desesperada porque Joshua hoje está com a barriga inchada e está sentindo muita dor,” disse.  “Já é o terceiro dia em que não elimina fezes.”  Ele disse “pass stool,” o que me pareceu afetado, mas como o inglês não é sua primeira língua, decidi não julgar.

O caso me parecia de fato uma emergência. Eu já tinha ouvido horrores do sistema de saúde na Tanzânia. Ele queria que eu ligasse pessoalmente para um outro médico que lhe recomendaram, mas cujo inglês ele não conseguia entender direito. Eu o aconselhei a procurar o hospital de novo. Tinha um longo roteiro a seguir depois do mercado. Na dúvida, dei a ele meu telefone para o caso de ele precisar ajuda com o inglês mais tarde. E arranquei o carro.

Na parada do banco, enquanto esperava na fila, tive dor de consciência.

Há algum tempo venho questionando meu ceticismo sobre ações individuais para ajudar as pessoas. Na espera de mudanças estruturais, muita gente morre. Se a gente não der uma mão aqui, outra ali, desperdiça a oportunidade de transformar o mundo, ou um ínfimo fragmento dele.

Acho que Yusuf entende desses efeitos na consciência, porque justo naquele momento me mandou um torpedo dizendo, “Minha mulher ligou agora dizendo que a crise piorou.” Urgência. “Por favor, me ajude.” Solidariedade.

Não quis correr o risco de deixar o menino morrer quando eu poderia ter feito alguma coisa.

“Meet me at Clock Tower,” respondi, e voei para lá.

Yusuf apareceu com um olhar de medo e um vale de rugas entre as sobrancelhas. Abri a porta, ele entrou e fomos buscar Loveness e Joshua em casa. Ele disse que morava a oito quilômetros dali. No quilômetro 7, me orientou a virar à esquerda e entrar numa estrada de terra. À medida que avançávamos, a estrada ficava mais estreita e mais acidentada. Reduzi a velocidade ao mínimo.

A casa não chegava nunca. Perguntei quanto faltava. “Seis quilômetros mais ou menos,” disse. “São oito quilômetros a partir do asfalto.”  Não percebi o menor tom de desconcerto em sua voz.

Chegamos à casa, onde Loveness e Joshua nos esperavam, já vestidos para sair. No comitê de recepção, estavam também os outros dois filhos do casal e a mãe de Loveness, cujo nome não memorizei.

“Shikamoo,” disse, usando a saudação formal para os mais velhos em suaíli.

“Marahaba,” respondeu a grande mama, enquanto me abraçava e beijava, com um sorriso aberto de ponta a ponta.

Pai, mãe e filho subiram no carro e voltamos pelo mesmo caminho, rumo a um pequeno hospital privado. Ali eu já sabia que pagaria a conta. A consulta foi 15 mil xelins, nada alem de dez dólares. A médica, muito simpática, conversou longamente com Loveness em suaíli, enquanto ignorava as intervenções em inglês de Yusuf, que tentava me envolver na conversa.

“Deixe eu terminar de explicar tudo à mãe, por favor.”

Depois ela mesma se virou para mim e, num inglês cristalino, explicou que o menino tem um “redundant sigmoid cólon,” precisa ser operado o quanto antes, mas primeiro os pais vão precisar lutar por uma vaga no hospital infantil, único equipado para este tipo de cirurgia. Por isso é muito importante a consulta com a pediatra. “Ela pode pedir urgência no atendimento, até porque trabalha também no hospital infantil,” disse a médica.

O laxante e o analgésico que ela receitou para Joshua suportar a espera da consulta e possível internamento me custaram outros 22 mil e 500 xelins e a consulta com a pediatra, marcada para o dia seguinte,30 mil.

Era fim de tarde e eu expliquei a Yusuf que não os levaria até em casa. Minha casa fica no caminho. Eles voltaram comigo. Perto de casa ele me pediu para deixá-los daí a um quilômetro, na entrada da rua de terra.

“Está me esticando um pouco,” pensei, mas os deixei onde ele pediu.

Na manhã seguinte tinha uma mensagem no celular, agradecendo pelo meu tempo e dinheiro e dizendo que a médica mandou internar o menino na terça, para uma cirurgia na sexta.

“Que bom que ele está melhor,” respondi. “Nos vemos semana que vem no mercado.” Eram 10 horas da manhã. Voltei aos meus afazeres. Às 11h, nova mensagem:

“As coisas pioraram. Joshua está passando mal. Liguei para a médica e ela mandou interná-lo logo. Por favor nos leve ao hospital.”

Fiquei um pouco atordoada. Não estou muito à vontade na pele de boa samaritana e além disso senti que Yusuf estava me usando. Ao mesmo tempo, eu havia visto o resultado do exame e conversado com a médica. Tinha provas de que o menino realmente enfrentava um problema grave de saúde. Estava em conflito comigo mesma. Como já tinha metido os pés, decidi não largar a história na metade. Levaria a família ao hospital e depois prosseguiria com meu programa.

Nos comunicamos por telefone até eu achar o a estação de piki-piki, os mototaxis de Arusha, onde os tinha deixado na tarde anterior, à entrada da rua de terra. Loveness e Joshua estavam esperando na sombra, enquanto Yusuf me acenava na estrada. Parei e lhe fiz a pergunta que deveria ter feito muito antes: “Mas onde é mesmo esse hospital?”

“Não, não é muito longe, fica a uns 50 km daqui. Sabe onde é o aeroporto de Kilimanjaro?”

“Hein???”.

“É, mas é 50 km de Arusha, e daqui vai ser menos porque já estamos fora da cidade.”

“Mas é em frente ao aeroporto ou depois?”

“Um pouquinho depois.”

“Yusuf, este hospital não fica em Moshi, né?”

“Exato, fica em Moshi.”

“Moshi não dá.”

“Olha ali, Loveness e Joshua estão ali. Por favor”

“Moshi, Yusuf? Eu não sabia que o hospital ficava em outra cidade, a 81 quilômetros daqui.”

O sol brilhava, a estrada borbulhava de gente e meu carro estava parado num ponto de dala-dala, as vans que constituem o serviço de transporte urbano. 

Fiz o retorno para o outro lado da estrada, parei no acostamento e mandei Loveness entrar com o filho. Yusuf atravessou a estrada correndo e pulou no banco de passageiros.

No caminho ele tentou preencher meu silêncio com um vulcão infinito de histórias, elogios, comentários, de tudo um pouco. Inclusive contradições. Assim fiquei sabendo que a médica já havia mandado o menino se internar hoje mesmo, para se preparar para a cirurgia, que seria realizada assim que possível. Ele esqueceu que tinha me dito que Joshua estava passando mal, que o motivo da ida hoje era uma emergência.

Fiquei sabendo, também, que o ônibus que leva a Moshi é desconfortável, sem ar condicionado, e faz tantas paradas no caminho que leva o triplo do tempo para chegar.

Lembrei de ter lido sobre como os tanzanianos não têm o menor constrangimento em usar os muzungu, pessoas brancas. É o outro lado da moeda dos muzungu que vêm à África passar um verniz de caridade no currículo.

O Monte Kilimanjaro me orientava lá na frente. 

Um pouco menos de duas horas de estrada e chegamos ao hospital. Yusuf me mostrou onde era o estacionamento.

“Não, eu não vou estacionar. Vou embora.”

Ele me olhou com cara de menino a quem a mãe nega um pedaço de bolo e eu ganhei a estrada. De lá para cá já me mandou vários torpedos. Não respondi. A vida continua.

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