Bete Santos, professora da Escola de
Administração da UFBA
betesantos@ufba.br
Renata Rossi, doutora em Administração
pela UFBA
A escassez das águas tem ocupado a
agenda nacional e internacional nas últimas décadas. Cada vez mais, alerta-se
para o fato de que o principal motivo de guerra no século XXI será a água e não mais o petróleo. No Brasil,
historicamente, a falta d´água nos remete ao Semiárido, à indústria da seca, à
pobreza. A escassez das águas tem determinações naturais; porém, cada vez mais,
passa a ser associada ao uso predatório.
A falta d´água está se generalizando
e passa a ser considerada um fator limitante do desenvolvimento. O Rio São
Francisco tem enfrentado uma seca histórica e, ainda assim, empresas de
irrigação seguem utilizando técnicas arcaicas e predatórias. São Paulo
assustou-se quando Cantareira secou. Entretanto, assim que começou a chover na
região, deixou-se de falar em crise, e pouco se fala da relação entre escassez
e modelo de desenvolvimento.
No
segundo domingo de novembro passado, o jornal Folha de São Paulo publicou
matéria na qual a Agência Nacional de Águas-ANA propõe a criação de um mercado das águas no país. São várias as
possibilidades de constituição desse mercado, nesse caso específico, isso
significa que um ente privado pode comprar de outro a licença para
captação de água. Atualmente, é o Estado que concede a outorga ou o direito de
uso da água, e ela é intransferível. O pressuposto da proposta é o de que o
mercado seria capaz de regular o seu uso. Com isso, pretende-se trazer para o
Brasil a experiência de mercado das águas já existente em vários países, a
exemplo da Espanha e Austrália.
Não é
a primeira vez que se tenta instituir um mercado de outorgas das águas no
Brasil. Em 2002, o deputado Paulo Magalhães, do então PFL, apresentou o PL
6.979, que, em seu artigo 20, instituía a possibilidade de transação de “direitos
de uso dos recursos hídricos”, em corpos d´água de dominialidade da União. Na
época, o PL foi arquivado por pressão do movimento ambientalista.
Agora,
é a ANA que propõe um mercado de outorga. Essa seria a melhor alternativa para
enfrentar à escassez no País? A quem interessa a criação de um mercado das
águas? Esse é um debate antigo e envolve exatamente o velho conflito entre a água como direito e a água como mercadoria.
Há quem considere que esses princípios são complementares. Afinal, no Brasil, a
água é um bem comum, de uso do povo (e não um patrimônio público ou bem
privado), o que impediria a criação de um mercado “perfeito” e nos protegeria
de externalidades.
Não estamos discutindo aqui o quão
social e ambientalmente justo é a cobrança da água como insumo produtivo.
Entretanto, o que a experiência internacional tem mostrado é que o mercado pode
não ser a melhor alternativa de regulação, haja vista os conflitos na Bolívia,
Argentina, Chile, Canadá, Índia e países da África. A troca ou venda de títulos
de direito sobre o uso da água tem resultado, em muitas situações, na
constituição de reservas de “direitos”, em especulação em torno de mananciais
estrategicamente localizados, além de não coibir o consumo nem reduzir a
poluição.
No
contexto das sociedades produtoras de mercadorias, quando falamos em água,
estamos nos referindo ao hidronegócio
e isso em um mercado comandado pelos interesses das “gigantes da água”,
devidamente representadas pela OMC, FMI e Banco Mundial.
O que resta, então, ao Brasil (que
exporta grãos e carne, ou seja, água), dono da maior reserva de água doce do
mundo? Talvez afirmar o princípio de que a escassez das águas não pode ser
compreendida como uma oportunidade de negócio e que precisamos romper com o
paradigma de que a água é uma mercadoria. Existe sim, conflito, contradição,
entre a água como direito e como mercadoria, afinal, o mercado é o locus do mais forte e não exatamente do
mais justo.
*Esse texto contou com a contribuição do
Prof. Luiz Roberto Santos Moraes, professor titular da UFBA.
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