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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

ABSOLVAM POLANSKI!


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De uma maneira geral, a grande obra, seja literária ou cinematográfica, normalmente reflete o tempo histórico do autor e a forma com a qual ela se entrelaça com a sua existência. Para quem conhece a filmografia do franco/polonês Roman Polanski, 81 anos, diretor dos aclamados O Bebê de Rosemary, Chinatow e O Pianista, entre outros, é impossível não perceber traços de uma vida marcada por acontecimentos terríveis, que, consciente ou inconscientemente, se fazem presentes e até lhe conferem um sentido estético.
Sim, porque, diante das tragédias das quais foi vítima, como escapar de ser enviado para um campo de concentração na Polônia, perder a esposa assassinada grávida de oito meses e, ainda, ser acusado de abusar sexualmente de uma adolescente nos EUA, é impossível pensar que tais fatos não tenham influenciado a sua obra.
O nome de Polanski, aliás, recentemente voltou a frequentar os noticiários por conta da possibilidade de que venha a ser extraditado para os EUA, justamente a partir da Polônia, onde planeja gravar algumas cenas do seu novo filme, D. Vale lembrar que, em 2009, o cineasta chegou a ser detido em Zurique, onde ficou alguns meses em prisão domiciliar até a justiça suíça se negar a entregá-lo às autoridades americanas.
Mesmo com os riscos de extradição na Polônia, considerados mínimos, Polanski vai levar às telas a história verídica do militar francês de ascendência judaica condenando injustamente à prisão perpétua por alta traição no final do século 19. O episódio, conhecido como o caso Dreyfus, dividiu a França e demonstrou, naquela época, o quão era disseminado o antissemitismo, o que não deixou de ser um triste prenúncio do que viria a acontecer décadas depois na Europa, quando se deu o holocausto.
O extermínio dos judeus, aliás, não poderia ficar de fora do repertório de Polanski, por questões óbvias. Em O Pianista (2002), por exemplo, vencedor, entre outros, do Oscar de Melhor Direção, de certa forma a trajetória verídica do músico Wladyslaw Szpilman é parecida com a sua, uma vez que durante a infância sobreviveu ao gueto de Cracóvia, enquanto a sua mãe fora morta em Auschwitz e o seu pai escapou por milagre de outro campo de concentração.
Mas a compreensão da obra de Polanski, que nasceu na França e se transferiu para a Polônia aos três anos, ao lado da família, se faz mais apurada a partir de uma leitura cronológica. No seu primeiro filme digno de atenção, A Faca na Água, de 1962, realizado em terras polonesas e que chegou a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme estrangeiro, ele deixou claro que não era mais um na selva da sétima arte.
Contando com o talento do fotógrafo Jerzy Limpan, com personalidade e maestria, Polanski consegue retratar as transformações e as questões de classe na Polônia após a Segunda Guerra Mundial. Para tanto, o cineasta se utiliza de um conflito geracional envolvendo três personagens durante um passeio de barco, trama que também insinua questões de fundo sexual, componentes que não agradaram o Estado polonês, que exercia uma política de censura com mão de ferro.
Assim, por tornar-se estranho ao regime e amparado pelo sucesso de A Faca na Água, o cineasta resolve deixar a Polônia e vai viver em Londres. Lá, ele realizou o primeiro filme da chamada “Trilogia do Apartamento”, no caso Repulsa ao Sexo (1965), que foi seguindo de O Bebê de Rosemary (1968), rodado em Nova Iorque, e O Inquilino (1976), em Paris. Em todos eles, independentemente da boa direção de atores, ofício no qual se tornou mestre, do domínio dos roteiros, da excelência das trilhas sonoras e da fotografia apurada, Polanski imprimiu algo de pessoal: um suspense aterrorizante, diferenciado, uma claustrofobia toda sua talvez paranoia da lembrança do gueto e de outras tragédias.
O curioso é que antes de O Inquilino, que parece autobiográfico, até porque é o ator principal, vivendo um franco/polonês em Paris, Polanski demonstrou seu talento em lidar com os grandes estúdios americanos, realizando para a Paramount Pictures o glorificado Chinatow (1974). Mesmo tendo perdido o Oscar para O Poderoso Chefão II, de Copolla, o filme, estrelado por Jack Nicholson e fotografado pelo lendário John A. Alonzo, é considerado uma obra-prima, com sua perfeita embalagem neo-noir.
Apesar do sucesso de O Bebê de Rosemary Chinatow, os EUA não trouxeram sorte a Polanski. Porque, lá, ele perdeu a primeira mulher, a atriz Sharon Tate, assassinada grávida de oito meses pelo bando de Charles Manson, em 1969, tragédia que o cineasta superou com dificuldade, chegando a homenageá-la em Tess (1979), adaptado do romance de Thomas Hardy. Depois, em 1977, aconteceu o caso do suposto abuso à adolescente Samantha Geimer, o que o obrigou a fugir dos EUA, temendo uma pena que fosse arruinar a sua vida.
Hoje, apesar da “vítima” inocentá-lo, inclusive pedindo que a justiça americana encerre o caso, Polanski ainda acerta as contas com o seu passado, pois há sempre a ameaça da extradição, da humilhação, sem falar da eterna dor da perda trágica de Sharon Tate e das lembranças do holocausto. Mesmo assim, segue em frente, alimentando a fantasia da absolvição, filmando, buscando aplacar a dor e exorcizar os seus fantasmas.

Publicado no Caderno 2 de A Tarde

Raul Moreira
Jornalista e cineasta

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