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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

DIREITO A MORADIA

E SUA FUNÇÃO SOCIAL

Angelo Serpa



Em artigo anterior falei da legislação “de ponta” que dispomos no Brasil e que em geral não é levada em consideração nos processos de planejamento e gestão de nossas cidades. Essa legislação é uma conquista dos movimentos sociais engajados nos anos 1980 em torno do ideário da reforma urbana, culminando na elaboração de uma emenda popular e nos artigos 182 e 183 de nossa constituição.

Os referidos artigos foram regulamentados em 2001 pelo Estatuto da Cidade, considerado um avanço jurídico no tocante à garantia de participação nos processos de planejamento e gestão, explicitando as funções sociais da cidade e da propriedade. Nossa carta magna protege e garante a propriedade privada, mas lhe atribui uma função social de uso e ocupação, o que em última instância é um princípio básico de combate à especulação imobiliária.

A urbanista Raquel Rolnik, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, visitou as cidades-sede da Copa - não esquecendo que o Rio também sediará as Olímpiadas - e constatou que os direitos das milhares de famílias desapropriadas em função da instalação de infraestrutura para os megaeventos não foram respeitados: as pessoas receberam compensações insuficientes, não houve reassentamento em locais com condições melhores ou equivalentes àquelas onde moravam antes da desapropriação ou, nos casos de reassentamento em conjuntos do Minha Casa, Minha Vida, esse se deu em áreas muito distantes dos locais originais de moradia.

Na Região Metropolitana do Recife, Rolnik sequer conseguiu audiência com vereadores ou prefeitos dos municípios envolvidos. De acordo com os órgãos municipais, as indenizações eram baixas porque os moradores não tinham a escritura dos terrenos, contrariando o que dispõe a constituição com relação ao uso capião urbano: mesmo sem o documento os moradores estavam exercendo seu direito de propriedade sobre terrenos que de fato eram seus. No Rio, a relatora viu tratores derrubando casas “com as coisas das pessoas dentro”, sem respeito ao “direito à moradia para todos”.

As conquistas dos movimentos sociais foram na prática revogadas com uma legislação de exceção para a realização do evento esportivo. Finda a Copa, as leis de exceção ainda parecem vigorar nas cidades-sede. Em Salvador, donos de serralherias questionam a desocupação de imóveis na Ladeira da Conceição para viabilizar um projeto de requalificação que busca transformar as oficinas em “residências artísticas”, com recursos do PAC. 


Um dos moradores produz ferramentas e esculturas para o Candomblé desde sua infância, outro serralheiro alega que tem recibo de compra e venda da propriedade e está com o IPTU em dia. Agora, são pressionados pela SUCOM municipal e pelo IPHAN federal a deixarem seus imóveis, sem garantia de indenização ou transferência para outro local.

Na verdade, este projeto é exemplar para sublinhar a falta de transparência e participação da população nos processos de decisão sobre os destinosda cidade. Os serralheiros querem voltar às oficinas após a requalificação: eles são inegavelmente um patrimônio imaterial da cidade que deveria ser preservado com o reconhecimento do lugar como área de proteção cultural e paisagística de Salvador.

Angelo Serpa é professor titular da UFBA e pesquisador do CNPq. E-mail: angserpa@ufba.br

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