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quinta-feira, 19 de junho de 2014

EM CAMPO, OUTRAS GLÓRIAS

FLORISVALDO MATTOS
Planejava aguardar o final da fase classificatória da Copa do Mundo de futebol, da qual já foi surpreendentemente expulsa a campeã Espanha, declarando a morte de seu estilo por todos admirado e imitado, para celebrar algo que considero deslumbrante na atual edição desse torneio: a empolgante e fascinante presença de jogadores negros em várias seleções (fora as óbvias formações da equipe brasileira e elencos das de origem africana), especialmente nas de países tidos, antes como hoje, na história, como imperialistas ou de tradição colonialista, com pouquíssimas exceções, e então, adiantando-me, resolvi homenagear esses grandiosos atletas, em geral homens esbeltos, altivos e fortes, em meio a brancos simpáticos e educados, num exemplo patente de civilização, democracia e humanismo real. Para tanto, então, só encontrei um meio que satisfizesse meu intento – a transcrição de um poema que é parte de outro maior sobre as formas artísticas genuinamente, a meu ver, criadas pelo século passado (“Saudades do Século XX – Mitologias”, um elogio ao Cinema, ao Jazz e ao Futebol). Vai então abaixo a parte desse poema que celebra o Jazz, de suas origens à resplendência de seus grandes nomes, como a forma de arte com que a raça negra enriqueceu a história do Ocidente, com nada menos que a doce, sofrida e inesquecível voz de Billie Holiday, na monumental canção “StrangeFruit”, marco de uma época dolorosa. Ofereço a todos, tanto aos que amam e torcem, como aos que apenas toleram o futebol, além de sonharem com o Brasil campeão.

ACORDES E ECOS DA JÂNGAL

Desde que Buddy Bolden expedia
flechas de som da noite para o dia,
Nova Orleans era só fardo e barril,
irrompeu lá outra guerra civil,
sustentada em acordes e gemidos,
paixão, dor, consciência, duplos sentidos,
que proferem metais, tambores, cordas,
e deste vasto porto partem hordas,
aquilo que foi sopro, ritmo e canto,
de mistura com suor, lamento e pranto.
O do algodão e escravos Mississipi
é testemunha e, antes que se dissipe
essa remota história do fervor,
urdo um rol à memória do langor.
Começo por lembrar Louis Armstrong,
King Oliver, Sidney Bechet e o gong
De Big Sid Catlett; sigo um fundo vale
(de lá a Nova York, nada que me cale):
HawkinsBodyand Soul arrebentando,
nos criativos trinta do suingue, quando
reinam Flecther e JimmieLunceford,
a nova ordem do bom para o melhor.
Invoco Hodges, Bigard, repito Blanton,
o trombone vodu de Trick Sam Nanton,
no rastro de Bix, Basie, algo que fungue
o pescoço da aurora, até Lester Young,
príncipe do langor; alas ao bebop
e a quem que na caudal surja alto e tope
com Dizzy, Parker, Monk, Powell, Mingus,
que ao jazz raspam a face de domingos,
ou reste apenas nos flancos dessa grei
espaço à prata e o ouro de Billie Holiday:
corça, escapa entre dédalos de pedra,
tênue haste, mais Ofélia do que Fedra.


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