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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

AS CABEÇAS CORTADAS E O BANQUETE

Malu Fontes*
A violência brasileira estreou nos últimos dias mais um capítulo da sua série macabra de atrocidades: um vídeo feito por presos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, o estado brasileiro que há cinco décadas funciona como uma capitania hereditária da família Sarney, mostrando em close, e narrado em detalhes sórdidos, companheiros de cadeia decapitados e escalpelados em partes do corpo. Para que esse vídeo veio à tona? Foi um Deus nos acuda. O que não faltaram foram sensíveis indignados por terem sido submetidos a imagens tão violentas – como se alguém tivesse sido obrigado a vê-las – e quase nada incomodados com a realidade que as gerou.

Nessa terra do tudo que é a das redes sociais, onde o “eu acho” adquire cada vez mais tons de veredicto de tribunal, a arquibancada barulhenta dividiu-se em 3 correntes. A dos coxinhas, para usar a palavra da moda, apegados ao mantra dos “direitos humanos para humanos direitos” e à crença de que Deus, as cercas elétricas e os carros blindados vão dar conta do seu bem-estar. A dos sensíveis, chocados e com ânsias incontroláveis de vômito virtual por acharem um atentado ao estômago imagens tão violentas. E a dos pretensamente mais sofisticados: os críticos do jornal que divulgou o vídeo inicialmente, acusado de sensacionalista, antiético, desonesto e movido pelo lucro fácil gerado por informações desse tipo.

O argumento dos primeiros é o de que é pouco, bom e doce presos arrancarem a cabeça um dos outros, pois, assim, se autoexterminam logo e deixam a sociedade dormir em paz. Santa ignorância achar que a violência das cadeias com suas cabeças cortadas e o incêndio de ônibus e de inocentes, crianças incluídas, não são duas faces de uma mesma moeda. Já os chocados com a violência do vídeo atribuem à janela a responsabilidade pela paisagem. O que indigna é a veiculação do vídeo medonho, não as circunstâncias de Pedrinhas, onde, somente em 2013, houve quase 70 assassinatos. Quanto ao argumento dos que acusam a imprensa de torpe por veicular decapitados tão somente movida pela multiplicação do número de cliques e views em suas versões on line, é engraçado que não se veja as mesmas críticas contundentes à natureza comercial da publicação de centenas de gigabytes de informação diária inócua, visando views, sim, incluindo os veículos mais respeitados. O que mais se vê nos sites noticiosos são textos patéticos sobre mililitros de silicone de brothers and sisters e manchetes ridículas criadas a partir de fotinhas idem de famosos em suas redes.

A sangue frio, com o perdão do trocadilho, não se sabe o que surpreende mais: se é a governadora Roseana Sarney declarar sem pudor que a violência atingiu esse patamar porque o Maranhão tá rico, ou se o leitor de jornais partir da inocência, ou da ignorância, de que qualquer veículo de imprensa com plataforma na web adote o franciscanismo e desconsidere o potencial de clicagens e page views ao decidir o que vai publicar. E se o vídeo de Pedrinhas não deveria ser veiculado porque atinge o estômago das polianas de plantão, que tal ter nojo da realidade social brasileira? Mas, não. Nas arquibancadas rasas e perigosas da web (tomando emprestado um termo do ator Dan Stulbach), há até gente condenando repórteres que fazem perguntas contundentes a algum membro do clã Sarney, pois isso seria um desrespeito ao eleitor, já que Sarney pai e Sarney filha foram eleitos pelo voto popular. Ah, tá. Será que, em nome desse respeito ao eleitor dos Sarney, o jornalismo deveria poupar críticas a Roseana por seu banquete? Um edital recente, cancelado após o barulho gerado pela imprensa, anunciava o gasto de R$ 1 milhão pela governadora para abastecer o palácio com toneladas de lagostas, camarões e congêneres.
* Malu Fontes  é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba

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