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terça-feira, 5 de março de 2013

DIÁRIO DE VIAGEM


 por Marcos Augusto Pessoa Ribeiro

De tudo serei europeu.
     Mas jamais abdicarei de cantar canções brasileiras ao estilo nacional – com infinita delicadeza e sensualidade pueril.
     E do olhar selvagem de habitante do Novo Mundo!
     (Porto.)

     Em meu primeiro dia na Europa, saí do hotel às dez da manhã para explorar o Porto.
     Doze estimulantes graus. Céu azul, claro.
     Vestido com roupas de inverno européias, caminhei pela cidade com uma auto-satisfação que beirava a arrogância.
     Há vinte anos a experiência se repete.
     Particularmente agora, é maravilhoso estar na Europa e poder falar minha própria língua!
     Bem sei que meu brio, minha altivez, provêm não apenas de meu intelecto, mas da condição física que permite arriscar-me em tais empreitadas.
     O estado de espírito resulta, em grande parte, do mapeamento que o cérebro faz das condições orgânicas do corpo.
     Aos 55 anos, pergunto-me por quanto tempo mais serei capaz de viajar sozinho pela Europa, alardeando galhardia física.
     (Porto.)


A família estava reunida no refinado restaurante do hotel cinco estrelas, jantando.
     Pai – homem de uns 45 anos, branco, louro, nariz fino, vestido classicamente; mãe – mulher pouco mais jovem do que ele, branca, cabelos negros presos num coque; estilo “estrela de cara lavada”, em cuja pele se percebia o efeito de cosméticos caros; duas lindas filhinhas – uma com cerca de 10 anos, morena; outra, com seis anos, loura, angelical.  
     A cena toda, no silencioso restaurante à meia-luz, parecia de uma harmonia perfeita, idílica.
     A mulher e a filha mais velha se retiraram.
     A filhinha loura passou para o colo do pai e mostrou-lhe um ursinho de pelúcia; por alguns momentos, eles brincaram com o ursinho; o pai olhava-lhe nos olhos e sorria-lhe condescendentemente - com uma expressão amorosa tão intensa e particular que só é possível entre pais e filhos pequenos.   
     A filha acabou também se retirando.
     O homem pediu um conhaque, refestelou-se no sofá, com um braço estendido ao longo do espaldar, e, enquanto sorvia lentamente a bebida, semicerrou os olhos e ficou pensativo.
     Parecia refletir sobre sua própria felicidade e sobre o que tinha conseguido na vida.
     Creio ter percebido em seus olhos uma sombra de melancolia; como se a própria perfeição de sua vida fizesse com que não tivesse mais o que desejar. Como se compreendesse a fugacidade daquele momento.
  
     Perguntei-me por que nunca desejara ter uma família feliz.
     A resposta foi que, para obter conhecimento, comprometi-me com o diabo!
     (Lisboa.)    


     Seria muito mais fácil se eu pudesse fotografá-lo, filmá-lo, ou, até mesmo, pintá-lo.
     Mas sou escritor. Tenho apenas a palavra: seca e dura.
     Então vou escrever sobre Antônio, o garçom do bar do hotel de Madrid, de autenticidade e honestidade comoventes, acaçapantes; a pessoa mais marcante que conheci nesta viagem.
     Um homem de uns 60 anos, magro, com profundas entradas nos cabelos ainda predominantemente negros, curvado sobre si mesmo, rosto macilento e encovado, olheiras, dentes com falhas, escurecidos, e orelhas de abano. Usava camisa de mangas longas bordô com gravata borboleta negra.  Falava sem parar, sem refletir ou hesitar, totalmente espontâneo, com a franqueza rude que caracteriza os espanhóis. Nada havia a esconder.
     Reconheci-o imediatamente da literatura e do cinema.
     Uma espécie de palhaço carequinha dotado de melancolia celiniana e vivacidade felinniana.
     Mas muito mais poderoso e notável porque sua existência não resultara da imaginação de qualquer criador artístico.
     A cada pergunta que eu fazia, disparava a falar, sempre com ênfase, num espanhol rápido e repleto de argot, gesticulando com as mãos espalmadas, que se moviam em minha direção, enquanto curvava repetidamente as costas para frente.  Reclamou que um táxi até sua casa custava onze euros. Um absurdo!
      Movimentava-se incessantemente atrás do balcão, conversava com os clientes do bar com um entusiasmo e uma alegria verdadeiramente infantis. Um gato que nunca se cansa de brincar com o novelo de lã.
     Aquele era o seu trabalho e ele o amava.  
     Prolonguei minha estada e bebi mais vinho para observá-lo.
     Era como se lesse um romance ou assistisse a um filme.
     Quando me despedi, o bar já ia fechar e Antônio ainda limpava com zelo fervoroso o aço inoxidável do balcão. Uma colega pediu que ele parasse; aquilo não era necessário!
Ele respondeu alguma coisa que não entendi e continuou a limpar.
Dei-lhe boa-noite e saí.
Havia lágrimas em meus olhos.
(Madrid.) 


Durante minha viagem pela península ibérica, o mundo, naturalmente, não parou.
Nenhum solipsismo possível!
Os ecos dos eventos mais extraordinários – a surpreendente renúncia papal e o impacto quase ficcional de um meteoro na Sibéria – alcançaram-me através da Internet e dos jornais.
E, claro, tudo foi apenas coincidência.
Nenhuma relação poderia ser estabelecida entre meu reles deslocamento pelo planeta e tais excepcionais eventos.
(Granada.)

LENDA ÁRABE
Abd ar-Rahman III (912-961), o califa de Córdoba, receberia, em seu reino, a visita de uma delegação de cristãos, espanhóis do norte, com os quais estava em guerra.
Para impressioná-los e provocar-lhes temor, apresentando a magnificência de seu reino, mandou colocar uma fileira dupla de soldados – empunhando reluzentes, estreitas e compridas espadas, que lembravam as vigas de um telhado - durante todo o percurso de cinco quilômetros entre a cidade de Córdoba e seu palácio: Medina az-Zahara.
Ordenou que os enviados fossem conduzidos através da dupla fileira de soldados como se se tratasse de uma passagem coberta. A pompa deveria produzir máximo temor.
O chão fora coberto por ricos tecidos brocados, desde a porta de Córdoba até o local da audiência.
 No caminho, em determinados pontos, encontravam-se dignitários, sentados em suntuosas cadeiras revestidas de seda e brocados. Cada vez que os enviados cristãos viam-se diante de um desses dignitários, prostravam-se diante deles, pensando tratar–se do califa.
Era-lhes, então, dito:
- Levantem-se! Este é apenas um servo de seus servos!
Os enviados chegaram finalmente a um pátio, cujo chão estava coberto com areia.
Ao centro, encontrava-se o califa. Vestia trajes toscos e curtos; tudo o que trazia consigo não valia mais do que quatrodirham. Estava sentado no chão, cabeça inclinada à frente, tendo diante de si uma espada, uma fogueira e o Corão.
- Este é o soberano.
Disseram aos enviados; que imediatamente se prostraram.
Abd ar-Rahman III ergueu a cabeça em sua direção e antes que eles pudessem emitir qualquer som, proferiu:
- Deus ordenou que convivêssemos em paz e que nos prostremos diante Dele.
E exibiu-lhes o Corão.
(Córdoba.)


Foi um momento de inesperada perfeição.
Caminhei por três horas por ruas desconhecidas de Sevilla: descobrindo bares, restaurantes, livrarias, monumentos, praças, até deparar-me com uma loja de departamentos espanhola – El Corte Inglés–, na qual entrei por puro instinto de exploração.    
Voltei, ainda caminhando, até uma rua repleta de bares de tapase com grande movimento de pessoas.  Entrei num que me pareceu acolhedor, com muitos turistas e espanhóis.
Estava muito cansado e minhas costas doíam. Sentar representou um grande benefício para a coluna; tentei mantê-la ereta para minimizar a dor.
A seguir, pedi tapas e vinho tinto. Sabendo-me com sede, bebi água antes de tocar no vinho.
Comecei a ler (W. G. Sebald sobre Robert Walser).
Os tapas chegaram: cogumelos grelhados, jamón ibérico e salada de atum. Combinavam perfeitamente com o vinho. Devorei-os cautelosamente.
As pessoas observavam-me com curiosidade: um homem maduro sozinho, mas não solitário.
Um filho de um casal ainda jovem – garoto de uns 12, 13 anos, cabelo cortado à franjinha e óculos de lentes grossas – observava-se com uma curiosidade pura e instintiva, própria da idade. Talvez houvesse ali algo novo para ele.  A mulher de um casal de meia-idade, ligeiramente entediados, fixava-me com indiscrição que sabia ser indevida, mas que não conseguia controlar; afinal, seu marido já lhe era sobejamente conhecido...
A comida e o vinho vieram satisfazer, com precisão, a necessidade de alimento e relaxamento.  Não eram nem demais nem de menos. Tudo se encaixava perfeitamente; sentia certa avidez pelo momento; nem havia tempo de pensar sobre mim: comia, bebia e lia. O texto era fascinante.
A refeição acabou no momento certo; paguei a conta sem delongas e caminhei de volta ao hotel sob um frio estimulante.
No saguão, que parecia um aquário harmônico, com casais e pessoas idosas lendo silenciosamente, comi uma sobremesa e tomei um café. Subi ao quarto.
Ao deitar-me, fui envolvido por uma aura de prazer físico e espiritual. Sentia-me perfeito. De cada molécula de meu corpo provinha uma sensação prazerosa, como se todos meus elementos orgânicos estivessem em plenitude.
Curiosamente, sentia-me num ambiente familiar: talvez na infância, numa pequena cidade do interior baiano, quando dormia ouvindo as vozes de meus pais e seus amigos que conversavam na sala; talvez em Alcobaça, cidade onde veraneava na adolescência e na qual, todos, nas casas ao redor, eram amigos e conhecidos. Mas não conhecia ninguém em Sevilla!
Regulei a calefação para 22 graus e dormi nu, envolto numa espécie de escudo, de manto protetor.
Acordei às oito horas da manhã.
Estava ainda embrulhado nesta espécie de halo de prazer.
Espreguicei-me gostosamente na cama e deixei-me ficar até surgir vontade de levantar.
Fora uma noite perfeita, embora não saiba a que se deva.
No dia seguinte, repeti a caminhada, o restaurante e o vinho.
Mas o resultado não foi o mesmo.
(Sevilla).

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