quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

MEMÓRIAS DE BOLEIA DE CAMINHÃO


Kátia Narjara 
 empresária, cozinheira, blogueira

Meu pai era caminhoneiro, daqueles brutos, bem caricatos. Mas como os brutos também amam, apesar da dificuldade que tinha em expressar o seu amor, era portador de dulcíssimo coração e era doido por mim. Em casa era notório: eu era a sua preferida, sua menina dos olhos.
Comia muito mal. Quilos de manteiga no pão, toras de requeijão de barra, frituras de pingar óleo na camisa, latas inteiras de goiabadas, torresmos saturados, carnes salgadíssimas, e um sem fim de tranqueiras. Não foi à toa que morreu do coração.
Morrendo de fomes
Me lembro claramente da sensação que eu tinha vendo-o comer. Mesmo bem pequeninha, eu acho que percebia que aquela fome não era só de comida;  se fosse, ele já estaria satisfeito a três sanduíches de quitute Wilson atrás. Mas tive que viver algumas décadas ainda para entender os vários tipos de fome das pessoas em suas tentativas de compensações.
Meu pai se foi há 23 anos, levando consigo, em absoluto sigilo, todas as suas fomes jamais reveladas. E hoje vivo muito atenta às minhas próprias, a fim de não levá-las todas para o prato e acabar morrendo "de fomes"
Prendas nossas
Mas voltando às minhas memórias gastronômicas de boleia de caminhão, meu pai era um glutão do mal altamente consciente. Tanto que nas férias escolares, eu e meu irmão costumávamos viajar com ele por esse Brazilzão de meu Deus adentro, quando chegávamos a passar quatro dias viajando, e nós comíamos muitíssimo bem!
Além das comidas de bordo, que a mamãe preparava muito bem acondicionadas, quando ele viajava conosco, modificava todos os seus hábitos alimentares, e como num passe de mágica, sumiam os ovos coloridos, as linguiçonas com placas de gordura e pastéis fritos murchos de balcões suspeitos, para darem lugar a deliciosas paradinhas em casinhas de família que vendiam comida gostosa na beira da estrada. Lugares esses que o meu pai só parava quando nos levava. É como se guardasse aqueles doces recantos como prendas para os filhos. Sozinho qualquer coisa servia, mas para nós, o melhor banquete.
Nota sobre as comidas que a minha mãe fazia para as nossas viagens: hoje em dia a pessoa morre contaminada pela comida que transportou do restaurante até em casa numa quentinha, porque parou no caminho para tomar um drink, mas os frangos assados com farofa e arrozes da mamãe duravam dois dias nas marmitas e farnéis que carregávamos a bordo, ávidos pela hora das refeições, e não me lembro de nenhum distúrbio intestinal que tivéssemos tido.
Uma casinha amarela e um ensopado de galinha
Algumas dessas lembranças são muito vagas, mas me lembro com riqueza de detalhes de uma parada que eu amava muito. Acho que era na divisa do estado da Bahia com Minas Gerais.
Uma casinha amarela de um casal sem filhos. Ela cozinhava e ele trabalhava na borracharia anexa. Meu pai adorava o bife de fígado, mas eu e o meu irmão gostávamos mesmo da galinha ensopada que tinha cor de urucum, com batatinha, cenoura e muito coentro, tão macia, mas tão macia, que desmanchava com o garfo. Ela vinha com arroz fresquinho fumegante, farofa de manteiga, pirão e feijãozinho com louro.
Me lembro da sensação de esperar a comida, na varandinha lateral que dava para um monte de árvores frondosas, balançando as perninhas na cadeira, ouvindo o barulhão dos enormes caminhões chegando e saindo a todo momento, e de como eu detestava a interferência do cheiro de combustível na hora de comer.

Não me lembro da face de nossa gentil cozinheira, mas curiosamente, lembro-me de suas mãos assentando as tigelas de duralex marrom. E aquela talvez nem fosse a melhor parte, mas a cocada de leite no frasco de vidro da janela lateral que estava por vir.
Depois do almoço, meu pai armava redes embaixo do caminhão, utilizando os ganchos por onde passavam as cordas de amarrar o carregamento. Dormíamos o quanto queríamos aquele sono dos justos, justíssimos, e ainda posso sentir a brisa fresca  que tinham aquelas tardes da minha infância.

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