sexta-feira, 17 de julho de 2015

UM JUIZINHO

MARCELO TORRES

O nome do moleque era Marcelo. Devia ter uns seis ou sete anos. Estava com a mãe, que era só Marcelo pra lá, Marcelo pra cá. E quando falam meu nome, não tem jeito, eu olho mesmo - ainda mais se estiverem perto, como de fato estavam.

"Eu quero que ele seja um juiz", dizia a mãe, conversando com duas amigas, enquanto o menino provava uma camisa. Eu ouvia porque é impossível não ouvir o que falam no provador vizinho, ainda mais quando estão a falar alto, como era aquela conversa ao lado.  

Do lado de cá, a roupa que eu queria comprar caiu certinha em mim. Falei que ia levar e a vendedora me mandou para o caixa. Coincidentemente a mulher também foi pagar, ficando atrás de mim, filho grudado na saia, amigas ao lado.

Por um átimo de segundo estive no mundo da lua, de modo que, quando voltei, já peguei o trem andando: "Não, Silvia, não é juiz de direito, não. É juiz de futebol mesmo". Aí elas riram, ou melhor, caíram em gargalhada.  

Quem não riu, coitado, foi o menino, talvez por ainda não essas coisas. Ou por já estar com uma premonição sobre o futuro que já estão a reservar para ele (será que ele já diz "quando crescer quero ser juiz de futebol"?).
 
Por fora, eu também não ri nem gargalhei, apenas fiz de conta que estava concentrado no aifone (ficar com o rosto pregado no aifone é a coisa mais comum hoje em dia, em qualquer ambiente). Além do mais, se eu risse, talvez elas me julgassem enxerido e me dessem um cartão amarelo.

Só que eu não estava ouvindo-as. Ou melhor, ouvindo-as eu estava, mas não era por querer. Ouvia-as porque elas falavam muito, e falavam alto, ainda por cima. Era impossível não ouvi-las. Tapasse eu os  ouvidos, e elas se revoltariam - e aí era cartão vermelho na certa.

Bom, sério eu estava, seriíssimo eu fiquei. O olhar fincado no bendito aifone.

De relance, vi qual era a compra da mãe do menino - uma camiseta amarela, que não era da seleção brasileira, mas sim um novo tipo de camisa de árbitro de futebol. Já vai longe o tempo em que árbitros de futebol eram homens de preto, hoje eles estão alegres, festivos, coloridos - até patrocínio na camiseta eles já têm. 
 
"O pai dele é juiz", explicou a mãe, sempre feliz, talvez querendo que todos a víssemos e ouvíssemos. "Ele [o pai] é professor de educação física e juiz, ele ganha cinco mil para apitar uma partida de noventa minutos". E emendou: "Dá quase trinta pilas por mês”.

“Então ganha mais que um juiz de direito”, disse uma das amigas. “Mais que um presidente da República!”, acrescentou a outra. “Mais”, ela confirmou. “Então é melhor ser juiz de futebol mesmo”, ponderou a primeira amiga, convicta. “É melhor”, concordaram todas. 

Embora por fora eu permanecesse sério, seriíssimo até, por dentro eu morria de rir ou talvez de inveja. E engolia a língua, pois ela estava doidinha para dar nos dentes, entrar na conversa, dar palpite, soprar o apito, dizer que este outro Marcelo também havia sido juiz de futebol.

Mas infelizmente - ou talvez felizmente - eu já estava de saída, pagando a compra, precisava ir trabalhar. E a mãe do futuro juiz dizendo: “Se eu já era xingada por ser esposa, agora serei xingada por ser mãe. Para os torcedores dos dois times, todo juiz é corno, viado e filho da puta".

Saindo de campo, descendo as escadas da loja, eu ainda ouvi novas risadas, na verdade gargalhadas. Parecia que elas sabiam que eu fui juiz, e um juiz que não ganhava nada, só desaforos e palavrões. Será que riam de mim? Entrei no carro pensando no bordão de um narrador: "Que fase! Que fase!" Aí liguei o carro e falei para o volante: "Segue o jogo". 

(Marcelo Torres - marcelocronista@gmail.com)

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