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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O LADO CULTURAL DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

SARAH CARNEIRO

O bárbaro atentado à sede do satírico jornal francês Charlie Hebdo desencadeou uma série de comentários nas redes sociais, e não tem sido rara a interpretação que diz: “eles provocaram”.
Subliminarmente esta afirmativa traz a seguinte frase: “eles mereceram”, e tal modo de traduzir o que aconteceu em Paris revela que, infelizmente, ainda estamos num estágio humano no qual a vingança goza de certa legitimidade.
O pensador francês Philippe Breton nos lembra de que a vingança é uma camada da marcha civilizatória que deixa de ter sentido, quando a palavra ganha lugar de importância na caminhada, e assim recursos de mediação passam a ser usados em contextos marcados por conflitos. O diálogo começa então a ser uma possibilidade para a interação entre diferentes. Portanto, se os cartunistas provocaram, e cabe ao cartum problematizar a ordem vigente, as reações não devem advir do tiro que mata.
O assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo é um atentado contra um modo livre de pensar, artigo que está inclusive bastante raro no planeta. Na França, a liberdade de expressão é realmente levada a sério e o jornalista é um ator social extremamente respeitado.
Charlie Hebdo é um veículo que tem na liberdade de fala a sua identidade, de modo que desde a sua criação vem, em nome do humor e da criatividade, produzindo conteúdos críticos alusivos a variados temas, desde economia à sexualidade.
Mas no Brasil, onde a liberdade de expressão é o argumento usado com má-fé por Ratinho, Bocão e Datena, por exemplo, para produzirem o péssimo jornalismo que assinam, compreender a relação que o irreverente e sofisticado Charlie Hebdotem com a liberdade de expressão fica muito difícil.
Noutras palavras, a "Liberdade de expressão" chega a nossos ouvidos contaminada pela defesa equivocada que os programas popularescosfazem desse pilar da democracia, para poderem veicular suas porcarias depreciando as pessoas envolvidas nas matérias publicadas.
Tais programas deitam e rolam, por exemplo, na cobertura acerca da insegurança urbana, mas jamais levam o espectador a pensar sobre a relação entre o esvaziamento do espaço púbico e o aumento da violência. Trata-se de produtos televisivos ruins e que não deveriam estar no ar.
Já a liberdade de expressão do Charlie Hebdoé honesta. Ela é a âncora para viabilizar conteúdos que nos levam a pensar; seus cartuns e suas charges nos estimulam a compor ângulos diversos em torno da realidade, ainda que para isso a acidez seja um recurso, o que, claro, merece problematizações.
Contudo, estas problematizações têm que ser feitas na camada do discurso, que é a camada das intervenções do Charlie Hebdo, e não por meio da balaque silencia, fere e subtrai a vida.
Além disso, as abordagens do Charlie Hebdo não têm endereço fixo. Todas as dimensões da vida são alvo de indagação. Trata-se de um veículo que se ocupa da crítica sem concessão, tanto que a capa de sua última edição do ano passado traz François Hollande em situação vexatória, e deste modo o veículo evidenciou a baixa popularidade do presidente da República.


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