SARAH CARNEIRO
O
bárbaro atentado à sede do satírico jornal francês Charlie Hebdo desencadeou uma
série de comentários nas redes sociais, e não tem sido rara a interpretação que
diz: “eles provocaram”.
Subliminarmente
esta afirmativa traz a seguinte frase: “eles mereceram”, e tal modo de traduzir
o que aconteceu em Paris revela que, infelizmente, ainda estamos num estágio
humano no qual a vingança goza de certa legitimidade.
O
pensador francês Philippe Breton nos lembra de que a vingança é uma camada da
marcha civilizatória que deixa de ter sentido, quando a palavra ganha lugar de
importância na caminhada, e assim recursos de mediação passam a ser usados em
contextos marcados por conflitos. O diálogo começa então a ser uma
possibilidade para a interação entre diferentes. Portanto, se os cartunistas
provocaram, e cabe ao cartum problematizar a ordem vigente, as reações não
devem advir do tiro que mata.
O
assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo é um atentado contra um modo livre
de pensar, artigo que está inclusive bastante raro no planeta. Na França, a
liberdade de expressão é realmente levada a sério e o jornalista é um ator
social extremamente respeitado.
Charlie
Hebdo é um veículo que tem na liberdade de fala a sua identidade, de modo que
desde a sua criação vem, em nome do humor e da criatividade, produzindo
conteúdos críticos alusivos a variados temas, desde economia à sexualidade.
Mas
no Brasil, onde a liberdade de expressão é o argumento usado com má-fé por
Ratinho, Bocão e Datena, por exemplo, para produzirem o péssimo jornalismo que
assinam, compreender a relação que o irreverente e sofisticado Charlie Hebdotem
com a liberdade de expressão fica muito difícil.
Noutras
palavras, a "Liberdade de expressão" chega a nossos ouvidos
contaminada pela defesa equivocada que os programas popularescosfazem desse
pilar da democracia, para poderem veicular suas porcarias depreciando as
pessoas envolvidas nas matérias publicadas.
Tais
programas deitam e rolam, por exemplo, na cobertura acerca da insegurança
urbana, mas jamais levam o espectador a pensar sobre a relação entre o
esvaziamento do espaço púbico e o aumento da violência. Trata-se de produtos televisivos
ruins e que não deveriam estar no ar.
Já
a liberdade de expressão do Charlie Hebdoé honesta. Ela é a âncora para
viabilizar conteúdos que nos levam a pensar; seus cartuns e suas charges nos estimulam
a compor ângulos diversos em torno da realidade, ainda que para isso a acidez
seja um recurso, o que, claro, merece problematizações.
Contudo,
estas problematizações têm que ser feitas na camada do discurso, que é a camada
das intervenções do Charlie Hebdo, e não por meio da balaque silencia, fere e
subtrai a vida.
Além
disso, as abordagens do Charlie Hebdo não têm endereço fixo. Todas as dimensões
da vida são alvo de indagação. Trata-se de um veículo que se ocupa da crítica
sem concessão, tanto que a capa de sua última edição do ano passado traz
François Hollande em situação vexatória, e deste modo o veículo evidenciou a
baixa popularidade do presidente da República.
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