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domingo, 6 de abril de 2014

SUA MÃO


Sou de uma geração educada com rigor militar. Não me lembro do colo de minha mãe nem de passeio guiado pela mão paterna, e de minhas avós pouco mais que um rápido beijo de boa-noite. Nasci pouco antes da Segunda Guerra. Menino tinha que cedo ser preparado para enfrentar as agruras da vida, incluindo alguma hipotética guerra. Cresci e amadureci com tais estranhos princípios, sem adivinhar quanto eram absurdos, pois mesmo a leoa lambe seus filhotes e o jacaré carrega, na temível boca, sua prole, com a mais extrema delicadeza.

Chegando ao Brasil, de repente, entrei numa cultura comportamental radicalmente oposta. A cultura do abraço, do beijo, do toque amistoso. Você ainda nem cumprimentou a moça recém apresentada e ela lhe permite beijar a bochecha. Encontrou o sujeito na semana passada, conversou por dez minutos e hoje lá vem ele com imenso sorriso e aquele abraço. Alguém pretende passar na multidão? É só um leve toque com a mão, no braço ou no ombro alheio, e a muralha se abre com um pois-não. Beijou a mão da senhora? Ela também beijará a sua.

Quantas pessoas terei tocado no trabalho, na quitanda, no ônibus ou na saída do cinema, durante um dia qualquer na Bahia? O efeito psicológico pode ser detalhado sem hesitação. Tocar alguém é desarmá-lo de qualquer eventual desconfiança. É mais que um contrato de não-agressão: é uma promessa de amizade, por efêmero que seja o momento.

Tocar seu semelhante é lembrar que somos humanos e gregários, frágeis e inseguros.
Carentes também. Ô quanto carentes!...Carentes de afeto, de compreensão, perdão, cumplicidade. Existirá sempre dentro de nós a criança que pede colo para dormir no braço protetor.

Mas tocar é muito mais que romper barreiras, é a prova maior de que somos vivos.
Acompanhei os últimos instantes da vida de minha mãe, durante uma longa noite de agonia. Interminável silêncio, carregado de tantas coisas que se atropelavam na minha tristeza, coisas que teria gostado de, enfim, confessar. Mas era tarde demais. O único cordão, tão tênue, que ainda nos unia, era o calor de minha mão cobrindo a sua, pássaro ferido e mudo, quase frio, sem mais força nem para mover um dedo. Restava apenas a lenta pulsação das salientes veias azuis.
Nunca saberei se ela tinha então consciência de nossa proximidade física.
Nunca estivera tão perto dela como naquela hora em que ela se afastava para muito longe, para sempre...

Dimitri Ganzelevitch                                                            Salvador 1 de março de 2008.


Um comentário:

  1. Dimitri, que texto bonito! Me emocionou!
    Beijo
    Katia Ganzelevitch

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